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Cultura, saúde e desenvolvimento em moçambique: um olhar sobre o ritual de purificação de viúvas ? pita kufa e a prevenção do AIDS na província da zambézia em morrumbala
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 1, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 1, 2017

Esta obra está licenciada com Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: O presente artigo apresenta uma análise sobre a prática do ritual purificação de viúvas - pita kufae como é que as práticas envolvidas no ritual se relacionam com as questões de saúde pública uma vez que no âmbito dos aspetos socioculturais do AIDS em Moçambique, esta prática é considerada uma das causas de propagação do vírus porque as normas envolvidas no ritual contradizem-se com os princípicios de promoção e prevenção da doença. Através do uso do método qualitativo e como ferramenta o uso de entrevistas indivduais e análise do conteúdo temático, constatou-se que se trata não apenas de uma prática de purificação de viúvas, mas purificação por morte de uma pessoa (independentemente do estado civil, género e idade). Apesar da comunidade não reconehecer que o ritual de pita kufa pode contribuir na propagação do virus do AIDS, através do envolvimento das autoridades governamentais e ONGs, regista-se uma tendência de mudanças socioculturais e espacais das normas envolvidas no ritual.

Palavras-chave: prática cultural, ritos, pita kufa, AIDS e comunidade.

Abstract: This article presents an analysis about widows purification ritual practice - pita kufa and how the practices involved in ritual are relate to public health issues since, in the context of the socio cultural aspects of AIDS in Mozambique, this practice is considered one of the causes that spread virus because the norms involved in the ritual are contradicted by the principles of promotion and prevention of the disease. Through the use of the qualitative method and as a tool the use of individual interviews and analysis of thematic content, it was verified that it is not only a practice of widows' purification, but purification by death of a person (regardless of marital status, gender and age). Although the community does not recognize that the pita kufa ritual can contribute to the spread of the AIDS virus, through the involvement of governmental authorities and NGOs, there is a tendency for sociocultural and spatial changes in the norms involved in the ritual.

Keywords: cultural pratice, rites, pita kufa, HIV-AIDS and community.

Resumen: El presente artículo presenta un análisis sobre la práctica del ritual purificación de viudas - pita kufa y cómo las prácticas involucradas en el ritual se relacionan con las cuestiones de salud pública una vez que en el ámbito de los aspectos socioculturales del SIDA en Mozambique, esta práctica es considerada una de las causas de propagación del virus porque las normas involucradas en el ritual se contradice con los principios de promoción y prevención de la enfermedad. A través del uso del método cualitativo y como herramienta el uso de entrevistas individuales y análisis del contenido temático, se constató que se trata no sólo de una práctica de purificación de viudas, sino purificación por muerte de una persona (independientemente del estado civil, género y edad). A pesar de que la comunidad no reconocía que el ritual de pita kufa puede contribuir a la propagación del virus del SIDA, a través de la participación de las autoridades gubernamentales y ONGs, se registra una tendencia de cambios socioculturales y espales de las normas involucradas en el ritual.

Palabras clave: práctica cultural, ritos, pita kufa, SIDA e comunidad.

1. INTRODUÇÃO

Um dos aspeto fundamentais para compreender os processos de saúde e doença numa sociedade e análise do seu desenvolvimento, é o estudo e conhecimento da sua cultura. Com o incremento do conhecimento técnico-científico sobre as doenças, qualquer ação de prevenção, tratamento e planificação na área da saúde dentro de um espaço geográfico necessita de ter em consideração os comportamentos, valores, atitudes, práticas e crenças da população em questão. Estes processos - saúde e doença - ocorrem como resultado de questões naturais (biológicas) e de fenómenos sociogeográfico que normalmente exprimem um acontecimento individual que preocupa o corpo social como um todo (Minayo, 1991). As abordagens de Ingold (1994, p. 327), demonstram que uma das características mais marcantes das sociedades humanas é a extraordinária diversidade e formas de viver a vida tendo em conta a cada circunscrição geográfico-espacial. Por isso, o estudo da cultura, das suas práticas e quiçá do processo de desenvolvimento de uma sociedade insere-se neste contexto.

Nos últimos anos, muitos cientistas sociais têm considerado as práticas culturais e os ritos como um dos aspetos muito importantes em termos de análise cultural e análise socioespacial. Os antropólogos, sociólogos, filósofos, historiadores e geográfos têm olhado para estas manifestações como uma ?janela? pela qual as pessoas fazem e refazem o seu mundo, usam e reusam o seu espaço (Bell, 1992). Este autor, como muitos outros antes dele, argumentam que as práticas culturais não são uniformes, podendo variar conforme as normas específicas das diferentes sociedades.

As práticas culturais e os rituais, são muito mais do que a mera comunicação de significados e valores, consideram-se um conjunto de actividades que se constrõem de forma particular e que ditam a forma de organização dentro de um espaço sociogoeográfico e a forma de sua ocupação. Por isso, a respeito dos rituais, vários autores sustentam que mais do que uma forma ou veículo para expressão da autoridade, explora-se a ideia de que os mesmos são um caminho para a [2] construção da relação entre a autoridade e a submissão dentro de uma realidade sociocultural.

Dito isto, a cultura e as suas práticas organizam-se através de um conjunto de atividades com propósitos educativos ou não, direcionados para um determinado grupo social, variando em função do conjunto de experiências adquiridas num período de longa duração e que inclui crenças, simbolos e representações com a finalidade de manter a coesão social. Portanto, de acordo com Martinez (1995), inclui todo o comportamento humano dentro do espaço sociogeográfico. Este conjunto de conhecimentos e ensinamentos manifestam-se através das [3] práticas culturais resultantes da produção humana, do seu everyday lifee da sua relação socioespacial.

Neste contexto, estas práticas seguem determinados padrões e referem-se a regras morais que permeiam, identificam e criam coesão dentro de uma sociedade, pois, fazem parte da identidade própria de um grupo humano num determinado período de tempo e espaço. É precisamente sobre uma destas práticas que este artigo incide: o ritual de purificação das viúvas, que é praticado em alguns países do continente africano, e que no presente artigo a abordagem é feita através de um estudo realizado em Moçambique na província da Zambézia - Morrumbala. Neste distrito que se localiza na região centro de País, o ritual designa-se por pita kufa ou kupita kufa e consiste numa prática cultutal que submete as mulheres, logo após a morte dos seus maridos, à consumação de relações sexuais sem proteção, ou seja, sem o uso do preservativo, preferencialmente com um membro da família do defunto, ainda que o homem escolhido para realizar o ritual possa ser desconhecido por parte da mulher desde que seja escolhido pelos parentes do falecido marido. De acordo com a prática, as viúvas ficam possuídas pelo espírito do falecido e este estado de impureza cria situações anómalas para a família e para a comunidade, causando doenças que podem levar a morte. Na sua crença só o ritual de pita kufa pode impedir semelhantes males. Esta prática representa um importante aspeto da vida da comunidade, particularmente por parte dos habitantes do distrito em estudo. Para além de ser considerado como uma forma de controlo social, o pita kufa transporta um conjunto de valores de longa duração que é a condição de reintegração das viúvas na comunidade.

Neste artigo pretendeu-se conhecer como é que estas práticas interagem com as questões relacionadas com a saúde pública, concretamente sobre a prevenção do AIDS, pois apesar de não dispor de dados exatos, segundo Mulandah (2008), o Ministério de Saúde em Moçambique para além das outras causas de propagação do AIDS, olha para esta prática como uma destas, uma posição suportada em vários estudos realizadas no campo das práticas de purificação das viúvas em alguns paises de África (WAX, 2003; La Franiere, 2005; Buckley, 1999; Okeyo & Allen, 1994; Butlerys et al., 1994; Gausset & Mogensen, 1996; Mogensen, 1997; Ingstad et al., 1997; Hammer, 1999; Wolf, 2001; e Dilger, 1999), e em Moçambique, de forma particular (WLSA, 1994;

Blanco & Domingos, 2008; Loforte, 2003; Graça, 2002; Matola, 2008; Mulandah, 2008; e Mungoi, 2010). Por outro lado, no que se refere ao contexto das políticas de desenvolvimento do País, o AIDS é considerado um dos grandes problemas pelas diversas consequências sociais e económicas que trás em Moçambique num cenário em que o País se encontra dentro de uma conjuntura de restruturação económica e social.

2. METODOLOGIA

Considerando que a apresentação da revisão bibliográfica nos procedimentos metodológicos é um aspeto facultativo, uma vez que todo trabalho de investigação é embassado e alicerçado à uma prévia revisão, neste trabalho os procedimentos empregues baseiam-se no uso do método de investigação qualitativa e como ferramentas, o inquérito por entrevistas individuais e a análise de conteúdo (analise de conteúdo temático) para apresentação e análise de resultados. A escolha do espaço deveu-se ao conhecimento pessoal que o pesquisador tem da região e à experiência profissional que desenvolveu.

Utilizou-se o método qualitativo porque pretendeu-se obter o máximo de informação e explorar as opiniões das pessoas que participaram no estudo. Utilizou-se um roteiro de entrevistas semiestruturadas, necessariamente flexível, uma vez que o objetivo foi o de criar conversas que se enquadrassem na realidade quotidiana dos entrevistados tendo em consideração a temática do estudo. Vários trabalhos ressaltaram a respeito das vicissitudes e cuidados necessários ao utilizar a entrevista como procedimento para coleta de dados (Bleger, 1980; Triviños, 1987, Manzini, 1990/1991; Dias & Omote, 1995), nesta pesquisa respeitaram-se estas particularidades.

As entrevistas foram realizadas pelo pesquisador e por dois assistentes de campo em locais e horários previamente estabelecidos entre os participantes. Entrevistou-se vários intervenientes da prática do ritual de purificação das viúvas ( pita kufa) e apesar de se tratar de uma amostra pequena, ela foi seleccionada de uma forma sistemática sendo, por isso, mais significativa para uma análise de conteúdo (Bauer & Gaskell, 2002). realizaram-se 17 entrevistas, distribuídas da seguinte forma: dois líderes comunitários, dois curandeiros, dois secretários de bairro, dois idosos, oito membros da comunidade (quatro homens e quatro mulheres), e o coordenador do Núcleo de Combate ao VIH-SIDA do distrito.

Na escolha deste universo partiu-se do princípio que numa metodologia de base qualitativa o número de sujeitos que constituirá o quadro das entrevistas dificilmente pode ser determinado a priori, pois tudo depende da qualidade das informações obtidas em cada depoimento e da profundidade e grau de recorrência e divergência destas informações (Duarte, 2002). À medida que se obtêm as respostas, vão sendo levantadas e organizadas as informações relativas ao objeto da investigação e, dependendo do seu volume e qualidade, o material de análise torna-se cada vez mais consistente.

Estabeleceu-se os primeiros contactos através das autoridades governamentais do distrito, a quem foram informados sobre o trabalho que se pretendia desenvolver e a escolha dos guias teve em consideração a sua influência na comunidade. Na prática trabalhou-se com um universo de pessoas influentes. Refira-se que não houve quaisquer dificuldades em contactar os entrevistados, ainda que o grau de disponibilidade para participar neste estudo tenha variado de acordo com o grupo de entrevistados.

Na apresentação dos resultados, optou-se pelo uso da metodologia de análise de conteúdo através da ferramenta de análise temática que tem em conta a frequência dos temas extraídos dos discursos, considerados como dados segmentáveis e comparáveis através da categorização dos temas predominantes nas respostas das entrevistas (do mais predominante ao menos predominante) como forma de fornecer uma representação simplificada dos dados brutos (Bardin, 1977).

3. RESULTADOS

3.1 Sobre o pita kufa em Morrumbala

De acordo com os dados obtidos nas entrevistas no distrito de Morrumbala, literalmente a palavra pita kufa significa "afastar o morto" ou seja, pita = afastar e kufa = morto. Este processo de "afastar o morto" é feito através da prática de uma relação sexual ritual após a morte de qualquer membro numa família e que por norma, deve ser consensual tendo em conta o tipo de pita kufa a ser realizado e a disponibilidade do purificador.

Este ritual de purificação envolvendo relações sexuais assenta-se na crença da existência de dois mundos ? dos vivos e dos mortos - que determina a existência de um ritual de passagem que marca a separação entre o vivo e morto. Na prática, de acordo com os entrevistados, se as pessoas vivem uma vida comum e a partilham nas suas diversas formas, a separação por morte cria uma "condição impura" e este "estado de impureza" deve ser mantido fora do convívio da família através da prática deste ritual.

Através dos dados constatou-se a existência de uma crença que se fundamenta na ideia da relação sexual representar a união entre duas pessoas - condição para a procriação - portanto, quando morre alguém na família, deve se realizar um ritual que represente a "desunião" com o falecido, e esta prática deve, segundo a suas normas e hábitos, ser preferencialmente realizada com um dos membros da família do defunto como forma de libertar a família para uma vida normal.

De acordo com os entrevistados, existem vários tipos de pita kufas e cada um deles depende preferencialmente da categoria da pessoa morta - casada, solteira, criança e adulta. Para o caso de uma pessoa casada, pita kufa das viúvas ? morte de um homem casado, a separação da viúva com o seu falecido marido é feita, como já se referiu, através de uma relaçao sexual com um familiar próximo do defunto. Na sua ausência, este ritual é realizado com alguém que é pago dentro da comunidade para o substituir. De acordo com esta prática, após o enterro deve se fazer um ?reconhecimento? do possível purificador dentro da família e em seguida procura-se ?conhecer o estado? da viúva (desde o emocional e de saúde), marcando-se então o ritual sexual que deve ser realizado na casa do falecido.

Outro tipo de pita kufa que se realiza é o dos viúvos - morte de uma mulher casada, que apesar da comunidade acreditar que só a viúva deve ser purificada, os líderes comunitários e os idosos entrevistados afirmaram que o ritual deve ser realizado de igual forma quando morre um dos conjugues, sendo que nesse caso deve se ?pagar? uma mulher dentro da comunidade para a realização da relação sexual ritual com o viúvo.

Na morte de uma criança, o pita kufadeve ser realizada pelos seus pais, logo após o enterro da criança. Para o caso da morte de uma pessoa idosa e sexualmente inativa ou solteira, o pita kufaé realizado pelo responsável do agregado familiar com a sua esposa, por outra, se o chefe do agredado familiar não tiver condições para realizar a relação sexual ritual, o pita kufa deve ser praticado pelo seu filho mais velho e a sua devida esposa. Em todos os tipos de pita kufas a ser realizado, a decisão deve ser consensual através de uma reunião familiar. Há que fazer referência o fato de não se usar o preservativo em nenhum dos pita kufasa ser praticado.

Para a população entrevistada, o preservativo além de ser considerado uma novidade para a população, é tido como um elemento estranho e por isso recusado na prática do pita kufa pois a sua presença anula o ritual de purificação. Na verdade, o uso do preservativo em Moçambique é associado ao contexto do aparecimento do AIDS, fato este que ditou diversas representações sobre o mesmo e consequentemente o seu uso. Portanto, à partida destacaram-se dois problemas relacionados com o uso preservativo (associado ao surgimento do AIDS como doença com várias "realidades" e o de não se enquadrar nos valores culturais na comunidade em estudo).

3.2 Sobre o pita kufa e AIDS

A respeito deste ponto, o dados obtidos através das entrevistas a cerca da relação entre a prática do ritual e a possibilidade de contrair o AIDS, demonstraram que apesar deste risco, não existe uma relação de causalidade porque pita kufa é uma tradição que carrega uma bagagem de longa duração e AIDS é uma doença recente, ou seja, na prática do ritual as normas envolvidas não permitem que os envolvidos contraiam o AIDS por se tratar de uma questão cultural.

Todavia, tanto os conservadores do ritual como os membros da comunidade admitiram que a existência do AIDS - realidade trazida pelo Governo - e sua respetiva divulgação nas comunidades - trabalho realizado pelas instituições governamentais e ONGs) - motivou o ressurgimento de outra forma de purificação das viúvas. A outra razão deve-se ao "sentimento" de posse que os purificadores - homens que praticam o pita kufa das viúvas - desenvolviam em relação as mulheres, pois consideravam-nas sua "propriedade" e que podiam manter relações sexuais com elas, mesmo depois da relaçao sexual ritual. Uma situação que, obviamente, criava alguns conflitos dentro da comunidade porque algumas viúvas não concordavam.[4]

Foi no contexto destas duas realidades que se ?reinventou e ou se revitalizou? , o Nyassanganha: uma prática cultural que substitui o pita kufadas viúvas, realizado por pessoas especializadas (curandeiros ou médicos tradicionais) através do uso de raízes medicinais. Ainda através dos dados, constatou-se que o ritual deve ser realizado com a presença de sangue, ou seja, sacrifício de um animal (cabrito ou galinha por exemplo). Na maior parte dos casos em que se nota a ausência destes requisitos, o ritual não tem valor para a comunidade e o curandeiro que adotar esta forma de praticar o ritual é considerado incompetente. Outra particularidade a considerar nesta forma de praticar o ritual fundamenta-se nas condições socioeconómicas, maior parte das mulheres no distrito segundo os dados do MAE (2014), demonstram que o índice de escolaridade e os níveis de pobreza no distrito são extremamente baixos, e por uma ser uma prática em que se exige pagamento de valores monetários, maior parte das mulheres viúvas não têm referidas condições para suportar os custos, fazendo com que as mesmas prefiram praticar a purificação por pita kufa.

Caso o membro da comunidade se recuse a realizar o ritual - especificamente as viúva - segundo [ 5] os dados, os membros da família podem contrair doenças provenientes de mbepo .Neste caso, antes da realização do pita kufa, as mulheres são mantidas distante do convívio familiar, não devem entrar na cozinha e muitos menos carregar ao colo bebés recém-nascidos. Por isso, o pita kufapara além de ser considerado uma forma de controlo social, transporta um conjunto de valores que obriga as mulheres viúvas dentro do grupo social a purificarem-se após a morte dos seus maridos.

Por parte do poder político, com os dados obtidos verificou-se que por se tratar de uma questão cultural tem sido difícil fazer com que a população reconheça as possíveis consequências negativas que o ritual pode trazer em termos de saúde pública. Entre as ações desenvolvidas destaca-se o trabalho realizado pela UNESCO Moçambique desde 2008 em parceria com a [6] MONASO, que teve, entre outros objetivos, a intenção de auscultar os diferentes atores sobre a possibilidade de substituir o ritual de pita kufa por outra prática que não envolvesse relações sexuais ou, no caso da sua manutenção, o uso do preservativo.

Este é um trabalho realizado pelo governo moçambicano e pelas ONGs por reconhecer que o AIDS contribui negativamente para o desenvolvimento socioeconómico do País. Em termos históricos, após a sua independência, Moçambique passou por uma guerra civil até 1992. As políticas de restruturação económica e social passaram por estabelecimento de medidas para prevenção de doenças que retardavam a restauração, crescimento e desenvolvimento do País e o alcance dos objetivos de desenvolvimento do milénio mais adiante. Por isso, o governo através do Ministério da Saúde está comprometido em mudar todas as práticas culturais que considera ?problemáticas? para a saúde pública, procurando articulá-las com as manifestações culturais das comunidades e das realidades socioespaciais, tendo desenvolvido para isso um conjunto de programas e atividades com o objetivo de encontrar formas alternativas inclusivas para todos os estratos sociais.

4. DISCUSSÃO

Maior parte dos estudos realizados sobre as práticas culturais na África a respeito da purificação das viúvas, estão relacionadas com a doença do AIDS, por isso Wax (2003) e La Franiere (2005), consideram que estas práticas se enquadram na violação dos direitos básicos das mulheres, aumentando deste modo o risco destas contrairem o vírus do AIDS. Sobre o mesmo aspeto, estudos feitos no Kenya por Okeyo & Allen (1994), na Zâmbia por Kunda (1995) e no Ruanda por Butlerys et all., (1994), demonstram que apesar da grande variação sociaoespacial destas práticas, as mesmas se relacionam não apenas pela purificação das viúvas, mas também pela ausência do uso do preservativo.

Para o caso moçambicano, estudos feitos a respeito desta prática sustentam que a morte provoca uma situação de impureza, que afeta a família, a comunidade e em particular a viúva pela perda de seu cônjuge. Apesar de não existir um padrão que dita as normas de purificação da viúva em cada uma das realidades socioespaciais ao longo do País, o ritual é marcado pelos procedimentos mencionados anteriormente neste artigo. (WLSA, 1994 p. 52; Loforte 2003 & Da Graça 2002). Os dados apresentados nesta pesquisa, apesar de ser um estudo realizado no contexto da existência do AIDS em Morrumbala, a semelhança de outros estudos sobre esta temática, demostram a particularidade do pita kufa como prática cultural e não apenas como um problema de saúde pública. Por isso, direfentemente dos estudos realizados tanto em Moçambique como em África, a singularidade dos resultados acentassem-se no fato de não trazer o pita kufa apenas como uma prática de purificação de viúvas, mas como um ritual em que todos os membros da comunidade devem ser submetidos após a morte de uma pessoa, dai a existência de vários tipos de pita kufas. Por outro lado, as viúvas são ?consentidas? para puder-se realizar o ritual, uma vez que o seu estado de saúde conta muito para a sua marcação ou agendamento. Por se tratrar de uma prática em que os meios envolvidos para a sua realização contradizem-se com as normas de prevenção do AIDS, maior parte dos estudos sobre estes rituais, não centraram o seu objetivo no estudo do ritual em si, mas na possibilidade que as práticas envolvidas, as crenças e valores atribuidas a mesma podem trazer na saúde pública tendo em conta a existência do AIDS. Porém, para a comunidade de Morrumbala, regra geral, a morte envolve mudanças de natureza socioculturais que estabelece uma relação entre o morto e os sobreviventes, e esta situação envolve um conjunto de procedimentos que ditam a redefinição dos modos de sobrevivência da família e da comunidade. Por isso, de um modo geral, considerando os valores e significados atribuidos a prática, todos aderem a mesma porque acreditam que se não realizam o ritual, acontecimetos negativos podem ocorrer para todos. Justamente por isso, depois da prática do pita kufa, a viúva, a família e a comunidade já se encontram num estado de harmonia com os mortos e com seus antepassados, o que significa que a sua saúde, o seu bem-estar e balança social está em ?perfeitas? condições e em equilíbrio.

Outro aspeto a considerar reside no fato de apesar dos estudos realizados neste área associarem o pita kufa ao AIDS, as representações sociais da comunidade em estudo não vê a possibilidade dos praticantes do ritual contrairem a doença porque estão "protegidos" pelos seus antepassados. E como resultado destas crenças, estudos realizados em Malawi e Botswana no contexto dos aspetos socioculturais do AIDS, demostram que o complexo conjunto de sintomas do AIDS dentro de determinadas realidades socioespaciais, adquiriram novos significados e conceitos de doenças locais transmissíveis pelo não cumprimento da tradiçao e isto ocorre em outros paises como é o exemplo de kahungo na Zâmbia (Gausset & Mogensen, 1996; e Mogensen, 1997), em boswagadiBotswana (Ingstad et al. 1997), chira no Quênia (Hammer, 1999), kanyera no Malawi (Wolf, 2001) e makgume na África do Sul. Estas realidades socioepaciais localizadas, relaciona-se com o caso em estudo uma vez que de acordo com os dados, as doenças provenietes do mbepo que são identifacadas em Morrumbalas como sendo provenientes da recusa da prática do pita kufa, acabam tendo o conjunto de sintomas associados ao AIDS de acordo com os dados obtidos na direção de saúde do distrito.

Por isso, como prática sociocultural, o pita kufa é um fenómeno temporalmente flexível e em presença do AIDS, o governo moçambicano e a comunidade internacional (através do trabalho das ONGs), guiado pela constituição e pelos objetivos da sua política cultural, tem desencadeado vários programas para mudar as normas deste ritual através do reconhecimento das autoridades tradicionais na gestão de patrimónios culturais e tem promovido pesquisas comunitárias para integração de novos valores culturais favoráveis à saúde pública. O processo é, e como seria de esperar, bastante lento e o novo ritual é julgado negativamente por alguns membros do grupo, não sendo reconhecido como uma forma efetiva de purificação.

Contudo, é sabido que o capital social, económico e cultural exerce uma significativa influência na saúde dos indivíduos. No caso de Morrumbala, com uma população maioritariamente rural e um nível de escolaridade baixo, estas diferentes formas de capital determinam diversas representações sociais a respeito dos processos de saúde e doença.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com cada realidade sociogeográfica, as práticas culturais assumem determinadas processos que as tornam singulares, para o caso de Morrumbala, o pita kufa não é apenas um ritual de purificação de viúvas, mas um ritual realizado após a morte de uma pessoa dentro de uma comunidade.

Considerando que as práticas envolvidas no ritual se contradizem com as normas de prevenção do AIDS, através do envolvimento dos condervadores foi possível criar mecanismos para mudança da prática, apesar de se considerar um processo relativamente lento e que não é realizado por toda a população. Uma das razões que tem criado esta resistência à mudança devese ao carácter economicista que o ritual de purificação assume uma vez que existem dentro da comunidade pessoas com a função de purificar as viuvas, para os casos em que na familia nao exista alguem em condiçoes de realizar o pita kufa.

No contexto das políticas de desenvolvimento socioeconómicas do País, diante de uma realidade cultural, o papel das autoridades governamentais neste processo é de mediação entre a tradição e a necessidade de implementar medidas tendentes à promoção, prevenção e preservação da saúde da população.

Não se pode entender o pita kufa de uma perspectiva isolada de outras práticas culturais relacionadas com a morte, pois o pita kufa relaciona-se com as demais práticas tradicionais, isto significa que exigirá sempre a necessidade de estudos contínuos sobre esta temática. Por outro lado, este ritual não apresenta um único código, por isso a visão que existe sobre a sua influência na propagação do AIDS no país depende das representações que o estado tem sobre estas práticas e que as comunidades que o praticam têm a respeito do ritual.

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Notas

[1] Estudante de Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, cardenitocolher@yahoo.com.br
[2] FONTENROSE, J., (1966). The Ritual Theory of Myth. University of California Press, Bekerley & Los Angeles.
[3] O termo aparece em inglês porque neste artigo usou-se na perspectiva interacionista que tem a ver com a interacção das pessoas com o mundo e a perspectiva fenomenológica que tem a ver com a experiência das pessoas de viverem no mundo.
[4] No texto aparece o termo ?reinventou-se e ou se revitalizou-se? porque ao longo das entrevistas, os curandeiros e lideres comunitários afirmaram que se trata de uma prática que se realizava muito antes deste debate de AIDS, apenas aplicou-se para a purificação das viúvas. Por outro lado, os membros da comunidade entrevistados, afirmam que se trata de uma invenção para subistituir a relação sexual ritual.
[5] Mbepo é um termo local para designar doenças contagiosas e que segundo as suas crenças são transmitidas através do ?vento contaminado?, ou seja, toda a pessoa não purificada transporta uma ?carga negativa? que pode transmitir a qualquer pessoa através do contacto. As doenças provenientes de mbepo não são curáveis nos hospitais, apenas os médicos tradicionais poderão intervir e mesmo assim conduzem facilmente à morte, sobretudo se atingem crianças. Os dados obtidos através do diração distrital de saúde em Morrumbala, demostram que o conjunto complexto de sintomas portadores das referidas doenças provenientes do mbepo, maior parte delas fazem parte do quadro de sintomas de pessoas portadoras do AIDS.
[6] Rede Nacional de Ornanizações.


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