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O (possível) Eurocentrismo de Alexander e Luhmann: breve introdução ao debate pós (de)colonial
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 2, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 2, 2017

Recepção: 15 Outubro 2017

Aprovação: 22 Novembro 2017

Resumo: Neste artigo, apresento os princípios da crítica decolonial, utilizando seus pressupostos básicos para interrogar a teoria dos sistemas de Niklas Luhamman e a da configuração de esfera civil proposta por Jeffrey Alexander. Meu objetivo é verificar se as ideias destes dois teóricos ocidentais podem ser enquadradas naquilo que as críticas decoloniais chamaram de um saber eurocentrado com status de local-neutro, detentor e produtor da verdade universal; isto é, verificar um possível eurocentrismo em suas formulações. Contraponho, para tanto, tais teorias à alternativas teóricas provenientes de autores que escreveram a partir da periferia global. Com isso, busco pensar questões como: (1) podem estas teorias formuladas a partir do Norte servirem de ferramenta analítica para a compreensão de contextos outros? (2) Tais teorias apresentam algum viés universalista? (3) Trata-se de teorias que operam no sentido de uma reificação da realidade sociocultural do Norte desenvolvido?

Palavras-chave: Colonialismo, Eurocentrismo, epistemologias do sul, Teoria dos sistemas, esfera civil.

Abstract: In this article I present the main ideas of decolonial critique. I employ its assumptions to question Niklas Luhman?s theory of systems as well as Jeffrey Alexander?s configuration of civil sphere. The paper checks if the ideas of these two western theorists can be framed in what the decolonial critiques have called a local-neutral status eurocentric knowledge, holder and producer of universal truth; or simply, to verify a possible Eurocentrism in its formulations. As a counterpoint, I also explore the theoretical alternatives proposed from a peripheral/global, as a means to think such questions: (1) can we employ the theorethical outillage of the North to understand other contexts? 2) Do they continue to possess a universalits bias? (3) Do they reify the social cultural reality of Northern societies to the rest of the global?

Keywords: Colonialism, Eurocentrism, Southern Epistemologies, Theory of Systems, Civil Sphere.

Resumen: En este artículo presento las principales ideas de la crítica decolonial. A partir de eso , se cuestion la teoria de los sistemas de Niklas Luhman e aquella de la configuracion de la esfera civil de Jeffrey Alexaders. Mi objetivo es verificar si las ideas de estos dos teóricos occidentales pueden ser encuadradas en lo que las críticas decoloniales llamaron un saber eurocentrado con status de local-neutro, poseedor y productor de la verdad universal; es decir, verificar un posible eurocentrismo en sus formulaciones. Em contrapuento, se explotan las alternativas teóricas proporcionadas autores que escribieron desde la periferia global como médio para explorar las seguintes cuestiones: 1) podemos emplear los instrumientos teóricos del Nord para compreender otros contextos? 2) Continuan a tener um viés universalista? 3) Reifican las realidades socioculturales del Nord y las transportan al restante dle globo?

Palabras clave: Colonialismo, Eurocentrismo, Epistemologías del Sur, Teoría de los Sistemas, Esfera Civil.

Decolonial, Modernidade e Eurocentrismo: considerações iniciais

Na esteira da reconfiguração do mundo pós-imperial e suas consequentes transformações no âmbito político-social e econômico, surge ? oriunda da crítica literária e calcada no trabalho de autores em alguma medida ligados às antigas colônias ? uma vertente mais ou menos organizada que ficou conhecida pela alcunha de Estudos Pós-coloniais. Essa vertente difusa e de difícil rastreamento apresenta como característica peculiar o ?esforço de esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade? (COSTA, 2006, p. 117). Isto é, construir uma alternativa as teorias conceitualizadas a partir de noções epistemológicas ocidentais, verificando os possíveis desdobramentos políticos dessas construções para os povos subjugados pelo Ocidente.

No tocante à América Latina, sua introdução de fato no debate pós-colonial deve-se aos trabalhos realizados por intelectuais ligados ao grupo Modernidade/Colonialidade, nos anos 2000. Essa apropriação crítica do pós-colonialismo ? muitas vezes tido como euro-orientado, culturalista e pós-moderno ?, conhecida pelo termo de-colonial, afirma a especificidade da experiência latino-americana, com especial ênfase na relação entre modernidade e colonialismo. Assim, importante para essa corrente de pensamento é entender a colonização da América como momento constitutivo da formação mesma da modernidade capitalista europeia, ainda nos idos do século XV. Por outras palavras, tal corrente procurou revelar a conformação de uma ordem geopolítica mundial que dependeu drasticamente das tensões, clivagens e apropriações entre o moderno e o colonial. Esta passagem de Enrique Dussel (2016, p. 58) ilustra bem essa dinâmica relacional:

No Ocidente, a ?Modernidade?, que começa com a invasão da América pelos espanhóis, cultura herdada dos muçulmanos do Mediterrâneo (Andaluzia) e do Renascimento italiano (pela presença Catalã, no sul da Itália5), é a ?abertura? geopolítica da Europa para o Atlântico; é a implantação e o controle do ?sistema-mundo? no sentido estrito (pelos oceanos e não mais pelas caravanas continentais lentas e perigosas) e ainda a ?invenção? do sistema colonial, que, por 300 anos, irá inclinar lentamente o equilíbrio econômico-político em favor da antiga Europa isolada e periférica. Tudo o que é simultâneo com a origem e o desenvolvimento do capitalismo (mercantil a princípio, de mera acumulação primitiva de dinheiro), ou seja, a Modernidade, o colonialismo e o sistema-mundo, denota aspectos de uma mesma realidade simultânea e mutuamente constitutiva. (Grifo meu)

Da colonização militar e política deriva toda uma estrutura de dominação cultural, ou melhor, a dominação cultural foi parte integrante de um projeto de dominação político militar. Tal empreitada operou, sobretudo, com a categorias de raça para construir uma ideia de superioridade ocidental em relação ao outro. Não cabe aqui destrinchar toda as implicações nem perpassar cada momento do desenvolvimento de tal dominação. De maneira sucinta, porém, é possível dizer que desta ideia de superioridade calcada na raça desdobra-se toda uma gama de processos culturais e políticos que culminaram no que é hoje comumente chamado de eurocentrismo. Ou seja, uma forma de racionalidade específica que, devido ao contexto acima aludido, se impôs como racionalidade universal, tornando-se parâmetro epistêmico hegemônico, e obscurecendo, assim, outras formas de produção do conhecimento, experiências políticas e vivências culturais.

Nesse sentido, autores ligados ao ?giro de-colonial? lançam mão de conceitos como colonialidade do poder (QUIJANO, 2000) e geopolítica do conhecimento (MIGNOLO, 2002) com o fito de apontar para uma continuidade das relações de colonialidade mesmo após a independência política das antigas colônias. No campo do conhecimento científico, a manutenção deste tipo de relação implica uma caracterização específica que confere ao conhecimento produzido fora dos centros hegemônicos e escrito em outras línguas a alcunha de saber local. Trata-se de, implicitamente, imputar ao centro o caráter de local neutro do conhecimento, isto é, um saber atópico, um saber-de-lugar-nenhum, detentor e produtor da verdade universal (PORTO-GONÇALVES, 2005).

Contra essa colonialidade do poder, do saber e do ser ? lado escuro e necessário da modernidade ? faz-se imprescindível um movimento de descobrimento e de revalorização das teorias e epistemologias do Sul, no intuito de criar ?paradigmas outros?, capazes de articular resistências teórico e prática, política e epistemológica, à lógica da modernidade/colonialidade (BALLESTRIN, 2013, p. 41).

Partindo desta breve introdução, não seria errôneo enquadrar toda a tradição sociológica clássica dentro de um quadro de saberes modernos articulados à uma geopolítica do poder que tem nas relações coloniais parte integrante de sua constituição. Com efeito, podemos postular que grandes nomes do pensamento social moderno, como os clássicos Weber, Marx e Durkheim, escreveram a partir de uma experiência histórico cognitiva engendrada por ideais tipicamente eurocêntrico, como os de desprendimento ontológico, racionalidade científica, progresso moral e tecnológico, emancipação, liberdade, justiça etc.

Meu objetivo especifico neste artigo é utilizar aspectos das obras de dois influentes intelectuais ocidentais, o sociólogo americano Jeffrey Alexander e o teórico social alemão Niklas Luhmman, como fio condutor do debate acima exposto, a fim de constatar um possível eurocentrismo em suas formulações. Apresentarei, ainda, alternativas teóricas às suas formulações vindas do Sul, com o objetivo de ressaltar um diálogo profícuo com as mesmas. De maneira geral, as perguntas a me orientar são: (1) podem estas teorias formuladas a partir de um contexto social cognitivo do Norte servirem de ferramenta analítica para a compreensão de contextos outros? (2) Tais teorias oriundas do Norte apresentam algum viés universalista, isto é, buscam a abrangência, pretendem ser teorias gerais para todas sociedades? (3) Tratam-se de teorias que operam no sentido de uma reificação da realidade sociocultural do Norte desenvolvido?

Luhmann e a periferia: a questão da diferenciação funcional

Vai muito além dos propósitos deste artigo, e de minhas competências, um mapeamento detido da teoria geral dos sistemas desenvolvida por Luhmman em todas as suas implicações e minúcias teóricas. Farei, pois, uma breve apresentação da controvérsia com um de seus discípulos heterodoxos, o brasileiro Marcelo Neves, de modo a lançar luz à problemática aqui tratada. A saber, a pertinência ou não de teorias formuladas no horizonte da modernidade central para análise de realidades sociais distintas. Para tanto, resumirei a caracterização luhmaniana de sistema social. Em seguida, focalizarei as críticas de Neves, dando destaque à questão da diferenciação funcional dos sistemas. Por fim, concluirei com alguns comentários críticos que julgo pertinentes.

Luhmann defini Sistema a partir da noção de diferença. Ora, um Sistema só o é mediante permanente diferenciação em relação ao seu entorno. Tal diferenciação se dá por intermédio de uma constante autodescrição do próprio sistema, que, assim, passa a mediar e criar seus limites. Por outras palavras: o sistema seleciona do meio estímulos relevantes, que são transformados pelas operações do sistema, o que acaba por transforma o próprio sistema. Tratam-se de operações que visam reduzir a complexidade do entorno, construindo sua própria complexidade; portanto, sua própria evolução. Nesse sentido, os sistemas são sempre auto referenciais e fechados operacionalmente ? Luhmann, em determinado momento, passa a trabalhar com o conceito de autopoiese, para dar conta de tais características.

Luhmann direciona essa noção sistêmica para tratar da sociedade. Tratam-se de múltiplos subsistemas sociais (economia, política, direito, etc.) que se auto reproduzem através de códigos e funções próprios. Nesse ponto, é importante frisar a autonomia (mesmo que relativa, como veremos adiante) de cada subsistema em seus processos de diferenciação auto referenciada ? é exatamente isto que o torna um sistema. Nas palavras do autor, trata-se do primado da diferenciação funcional. Outro aspecto importante é o fato de Luhmann conceber a sociedade moderna, em toda a sua complexidade, como multicêntrica e policontextural. Ou seja, não há primazia de um subsistema em relação aos demais; não há um centro da sociedade. Assim, segundo Luhmann, seria equivocado pensar a política ou a economia, por exemplo, como ponto heurístico de observação do social.

Fundamental para existência dos sistemas sociais é a comunicação. Na verdade, os sistemas sociais ?usam comunicação para constituir e interconectar os eventos (ações) que constroem os sistemas? (LUHMANN, 1999, p. 187). Com efeito, a comunicação é o único fenômeno capaz reproduzir os sistemas; sendo um sistema social nada mais do que comunicação que gera mais comunicação. Contudo, cada subsistema específico se reproduz mediante códigos binários específicos, ou seja, cada subsistema tem sua própria semântica operacional. Apesar de auto-produtores e auto-referenciais, há possibilidade de comunicação sistêmica, uma vez que os sistemas funcionais ?dispõem suas operações para observação recíprocas ? é o que Luhmann chama de ?interprenetração? ou (...) ?acoplamento estrutural?? (LUHMANN, 1999). Porém, ressalta Luhmann, o processo de acoplamento estrutural de forma alguma extingui o primado da diferenciação funcional, isto é, a ?autonomia auto-referencial no nível de subsistemas funcionais? (LUHMANN, p. 195).

O primado da diferenciação funcional é o ponto nodal da discordância entre Luhmann e Neves. As ponderações de Neves giram em torno da problemática do direito, seu campo de atuação, e, em linhas gerais, estabelecem uma diferença entre modernidade central e periferia no que tange a possibilidade do sistema jurídico se auto reproduzir de forma autônoma. Ora, na periferia global, onde, como vimos, a dinâmica colonial impediu a realização plena do Estado Democrático de Direito:

a lógica dos privilégios, a indistinção entre público e privado e a incapacidade de resistência das operações jurídicas as injunções do poder político e da influência econômica (...) [levaram ao] desvio da função do direito por conta da estabilização de formas de corrupção sistêmica que bloqueiam sua autonomia (GONÇALVES, 2013, p. 264-265)

Seguindo a crítica de Neves, percebe-se que é apenas nos países da modernidade central que a plausibilidade da autopoiese dos sistemas sociais se enquadra de forma satisfatória. Já em países onde a exclusão parece ser a regra, os bloqueios de autonomia sistêmica - isto é, a sobreposição de um código sistêmico a outro ? oferecem dificuldade de transposição do modelo luhmanniano do primado da diferenciação funcional. Luhmann chega a afirmar a ?inclusão? como característica da sociedade mundial e condição mesma da diferenciação dos sistemas; mas, a partir das críticas de Neves, torna- se clara a assimetria neste sistema-mundo:

de um lado, regiões efetivamente democráticas e caracterizadas pela complexidade estruturada, pela diferenciação funcional e pela inclusão; de outro, áreas com déficits democráticos, marcadas pela complexidade desestruturada, por corrupção sistêmica e pela exclusão (GONÇALVES, 2013, p. 264)

Portanto, uma vez que a autonomia operacional dos sistemas sociais é exigência para o funcionamento do sistema mundial, podemos concluir que devido ao seu não funcionamento em escala global pelas assimetrias supracitadas, a própria afirmação de um sistema mundial autopoiético torna-se problemática.

A despeito das questões apresentadas, é interessante observar certas peculiaridades do pensamento de Luhmann que o aproximam da rejeição pós-colonial à tradição intelectual ocidental. Luhmann deixa claro seu distanciamento com tal tradição ao romper com pretensões essencialistas, postulando, por exemplo, a importância da experiência do observador na constituição da realidade. Contudo, isto não o afasta das pretensões universalizantes, o que se torna claro ao lermos ?teoria geral para os sistemas sociais?, ou, ainda, em outras passagens, em que a ?pretensão abrangente? de seu sistema teórico fica demarcada.

Tal pretensão é curiosa. Afinal, o próprio autor postula a influência, como demarquei a cima, da experiência do observador na constituição da realidade, e admiti partir de um ponto especifico enquanto observador social ? ?a semântica intelectual greco-romano-cristão? (GONÇALVES, 2013, p. 258). No entanto, sua teoria sistêmica apresenta um alto grau de abstração teórica; fato típico do pensamento ocidental moderno: não seria esse o seu grande pecado?

Por fim, um comentário a respeito de Neves. O autor brasileiro, ao atribuir normativamente um caráter positivo ao padrão sociojurídico dos países centrais, e ao compara-lo a realidade latina americana, estipulando-o como padrão a ser alcançado, não logra êxito em escapar das armadilhas do eurocentrismo e suas tácitas noções de superioridade/inferioridade.

Esfera Civil: horizonte desejável ou reificação do Norte?

Nesta seção, utilizo a noção de esfera civil em Alexander (2006) para ilustrar o debate acerca da pertinência da noção de sociedade e esfera civil ? em suas articulações com uma herança democrática liberal ? ao transpormos tal conceito para análise normativa de outros contextos sociopolíticos ou até mesmo ao pensarmos uma possível esfera civil global. Para tanto, traçarei, primeiro, uma caracterização histórica mais geral do conceito de sociedade e esfera civil, para, em seguida, apresentar de forma sucinta a formulação de Alexander contida em seu The Civil Sphere. Por último, apresento certa crítica pós-colonial à noção de esfera civil.

De maneira geral, sociedade civil diz respeito ao conjunto das organizações, instituições e associações voluntárias entre os cidadãos articulados para além do âmbito privado (família) e do âmbito estatal (e as instituições a ele ligadas) em uma dada sociedade ? serve, portanto, como mediação e oposição às forças dos sistemas da política e da economia (MAIA, 2010). Partindo de uma perspectiva histórica, podemos afirmar que a ideia de sociedade civil foi criada pelo pensamento liberal do século XVII, como instrumento retórico normativo da emergente classe burguesa em suas disputas contra o ancien régime, estando ligada assim ao advento econômico do capitalismo e da propriedade privada. Trata-se de um conceito intimamente ligado à uma certa ideologia eurocêntrica da modernidade, com seus ideais de liberdade, civilidade, racionalidade, justiça, emancipação, progresso etc. (ACANDA, 2006).

As concepções recentes de Habermas e Rawls, com suas ideias de comunicação racional, Razão pública, consenso, liberdade e igualdade, se articulam de forma mais latente com esta tradição democrática-liberal. Jeffrey Alexander, por sua vez, parte de uma tradição de viés mais culturalista e está mais interessado nos conflitos e contingências expressas na esfera civil. Antes de adentramos na formulação de Esfera Civil em Alexander de forma mais detida, vejamos como o próprio defini Sociedade Civil:

Sociedade civil deve ser concebida como uma esfera de solidariedade na qual certo tipo de comunidade universalizante torna-se culturalmente definida e, em certa medida, institucionalmente reforçada. Na medida em que esta comunidade de solidariedade existe, ela se expressa e se sustenta pela opinião pública, por códigos culturais profundos, organizações distintas ? legais, jornalísticas e associativas ? e por práticas interativas historicamente especificas, tais como civilidade, critica e respeito mútuo. Uma comunidade civil deste tipo nunca pode existir como tal, ela apenas pode ser sustentada, em certa medida. Ela é sempre limitada e interpenetrada por relações limítrofes com outras esferas não-civis. (ALEXANDER, 2006, p. 31 apud MEDEIROS, 2008, p. 205)

Preocupado com o debate da autonomia do cultural no bojo da teoria sociológica, Alexander parte de uma perspectiva estrutural-hermenêutica: que busca desvendar as estruturas simbólicas profundas que conformam e orientam as ações concretas dos atores sociais. Tais significados coletivos, segundo Alexander, são produtos de uma teia de relações e interação sociais estabelecidas dentro do marco de um contexto sócio-histórico especifico. Nesse sentido, ao teorizar a respeito da Esfera Civil, deixa claro sua preocupação ? diferente de formulações mais idealistas ? em lidar analiticamente e empiricamente com esferas civis concretas, isto é, esferas realmente existentes e, portanto, sujeitas aos mais variados tipos de contingências e limitações.

Segundo Alexander, a esfera civil é uma estrutura horizontal que, ao se relacionar com as outras esferas do social, perpassa-as, operando como centro simbólico da sociedade. Tal característica deve-se não só ao seu caráter mais institucional, representado, por exemplo, na figura dos media, mas sobretudo à sua dimensão subjetiva. Nas palavras do autor: ?um âmbito da consciência estruturada e socialmente estabelecida (...), uma rede de compreensões que opera por baixo e acima das instituições explicitas e dos interesses autoconscientes das elites? (ALEXANDER, 2000, p. 143, tradução minha). Esta ?consciência estruturada?, esta ?rede de compreensões? está articulada por códigos simbólicos binários, que constituem aquilo que o autor chama de ?discurso civil?.

Neste sentido, Alexander identifica três conjuntos de estruturas discursivas ? isto é, ?estruturas ideacionais binárias que estão no centro das disputas engendradas no âmbito da esfera civil? (MEDEIROS, 2008, p. 205-206) ?, que operam com categorias antitéticas referentes a premissas tipicamente democráticas, e que se relacionam entre si. São elas: a estrutura discursiva dos atores, das relações e das instituições sociais. Assim, categorias como racionalidade e irracionalidade, amigo e inimigo e igualdade e hierarquia são manobradas pelos atores engajados nas lutas políticas, visando sempre a apropriação simbólica do polo positivo ? aquele que alude a uma ordem democrática virtuosa e livre-, bem como a incapacitação simultânea de determinados grupos e instituições, ao imputar-lhes traços do lado binário oposto ? isto é, traços antidemocrático e anticivis.

Para além das tensões internas à esfera civil, Alexander também problematiza as relações conflituosas entre as diversas esferas da sociedade. Neste sentido, há não só os riscos de ??colonização? da ?esfera civil? pelas lógicas sistêmicas das esferas não-civis do mercado e da política, como também a possibilidade inversa: a ?colonização? das práticas econômicas ou das formas de dominação política pelo binarismo ?cidadão?/?inimigo?, constitutivo do discurso civil? (BRASIL JUNIOR; OLIVEIRA, 2014, p. 349). Entretanto,

é a própria sociedade civil que detém a capacidade de operar ?reparos? [civis] por meio da mobilização em movimentos sociais, da formação da opinião pública, da participação em associações voluntárias e da abertura de canais para exercer pressão sobre os processos legislativos (MEDEIROS, 2008, p. 206).

Como vimos, e ao contrário de Parsons, que apostava numa crescente capacidade de inclusão das democracias liberais, Alexander depreende uma visão pessimista na qual a sociedade civil é fortemente marcada pelo conflito e contingência ? podendo ser o locus de práticas efetivamente inclusiva e democráticas ou não. No entanto, ao propor diversos modos de incorporação à esfera civil (assimilação, hifenização e o multiculturalismo), Alexander aposta

Na possibilidade de se construir uma genuína esfera política na qual o multiculturalismo, ao contrário de constituir uma fonte destrutiva socialmente, possa representar uma oportunidade para a elaboração de um universo cultural baseado em valores universalistas criando vínculos de solidariedade (MARTINS, 2013, p. 232)

São muitos os autores que buscaram contribuir para uma representação mais crítica e relativizada do papel da esfera civil. Dentre eles, destaca-se a produção do intelectual português Boaventura de Souza Santo. Preocupado em formular uma nova definição do conceito de esfera civil, que leve em conta a herança deixada pela lógica colonial nos países periféricos, o autor português aponta para as incongruências entre o conceito e as realidades sociais concretas (PEREIRA, 2008). Nesse sentido, escancara a extrema contradição contida já na gênese do conceito:

a ideia de sociedade civil, que nasce como um espaço de autonomia da classe burguesa em relação ao Estado e o mercado, emerge num momento em que grande parte da população do mundo era escrava nas colônias europeias (SOUZA SANTOS, 2004)

Em outro momento, procura demonstrar como certas lógicas de emancipação e regulação social típicas da modernidade ocidental não logram êxito ao serem transferidas à realidade coloniais:

por exemplo, a regulação social assente em três princípios ? o princípio do Estado, do mercado e da comunidade ? não dá conta das formas de (des) regulação colonial onde o Estado é estrangeiro, o mercado inclui pessoas entre as mercadorias (os escravos) e as comunidades são arrasadas em nome do capitalismo e da missão civilizadora e substituídas por uma minúscula sociedade civil racializada, criada pelo Estado e constituída por colonos, pelos seus descendentes e por minúsculas minorias de assimilados (SOUZA SANTOS, 2004b)

Se aceitarmos a crítica decolonial, que apregoa uma continuidade das relações de colonialidade mesmo após a independência politicas das antigas colônias, podemos inferir que o conceito de sociedade civil ? que num primeiro momento estabeleceu o outro colonial como não civil ? continua a conformar a partir de sua semântica eurocêntrica outras experiências históricas, muitas vezes de forma a encobrir relações assimétricas de poder sob o julgo de uma ?retórica da modernidade? (MIGNOLO, 2017), o que acaba por estabilizar e reafirmar a lógica do liberalismo central.

Em suma, esta imposição forçada de instituições e subjetividades forjadas no marco da modernidade ocidental resulta em instabilidades políticas e formas disfarçadas de dominação. Esta dinâmica agrava-se ao nos depararmos com formulações que apostam numa esfera pública global (KALDOR, 2003; ALEXANDER, 2006b; KUMAR, 2007). Ora, essa pretensão universalizante pode escamotear uma agenda liberal ? mesmo que supostamente multicultural ? que, ao apostar no diálogo simétrico entre as culturas, opere no sentido de uma reificação da experiência social do Norte e o consequente estrangulamento da possibilidade de expressão e sobrevivência de demais culturas ? sem falar nas relações deste tipo de agenda com um capitalismo transnacional de tipo neoliberal (DUSSEL, 2016).

O Eurocentrismo de Alexander e Luhmann: Considerações finais

É importante dizer que a obra tanto de Luhmann quanto de Alexander é imensamente mais extensa, complexa e refinada do que a caracterização das mesmas aqui apresentada. Não cabe, aqui, decreta-las eurocêntricas ? mesmo diante do fato óbvio de terem sido escritas por autores ocidentais e brancos ?, me propus, em verdade, a pincelar alguns aspectos de tais obras que ponham em relevo questões caras ao pensamento pós (de) colonial: pretensão de universalidade, reificação da experiência social do Norte e dificuldade de adaptação do arsenal teórico a realidades distintas. Dito isto, concluirei com algumas observações mais gerais do debate até aqui exposto.

Vimos, através de Neves, que a teoria geral dos sistemas de Luhmann encontra dificuldade ? sobretudo no que se refere a questão da diferenciação funcional dos sistemas sociais ? de se sobrepor à contextos sociais onde as contingências históricas não favoreceram a solidificação de uma semântica inclusiva democrática. Além disso, constatamos uma certa pretensão universalizante, que fica clara na formulação de uma Teoria Geral e de um sistema mundial, bem como no gritante nível de abstração da mesma.

No que concerne a Alexander, o localizamos dentro de uma tradição histórica liberal que, por mais refinada que seja sua formulação, o coloca perto de ideias típicas da modernidade ocidental ? tais ideias são alvo constante da crítica pós-colonial. Sua proposta teórica de esfera civil também não é facilmente transponível a realidades sociais onde o Estado Democrático de Direito não possui um lastro histórico mais firme. E mais: vimos que a formulação de uma esfera civil global não só tem pretensões universalistas, como incorre no risco de uma reificação da realidade social do Norte, colocando-a como única experiência política possível e gerando efeitos deletérios para a periferia do globo.

É importante ter em mente que ?as teorias não se limitam a modelos explicativos, mas desenham ?mundos possíveis? que se decantam na experiência? (GONÇALVES, 2013, p. 253). Portanto, uma ?teoria social que não discute o encontro colonial define-se automaticamente como um assunto de menor importância? (CONNEL, 2012, p. 12). Não se trata, contudo, de invalidar ou recusar determinada teoria devido à sua localização geográfica, mas antes, se abrir para o alargamento conceitual, teórico, metodológico, epistemológico e ontológico que perspectivas outras podem oferecer para o pensamento (pós) moderno central.

Sem mais delongas, concluo tomando de empréstimo as palavras do filósofo argentino Enrique Dussel (2016, p. 62-63). É necessário abrir espaço para as diversas culturas periféricas, se atendo para o fato de que elas ?não estão mortas, mas vivas, e, atualmente, em pleno processo de renascimento, buscando (e inevitavelmente equivocando-se) novos caminhos para o desenvolvimento de seu futuro próximo? e ?[capazes] de propor respostas inovadoras e necessárias para os desafios angustiantes que o planeta nos lança no início do século XXI?.

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