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?Juventude violenta? como categoria: sobre as construções da relação entre pobreza, juventude e violência
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 2, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 2, 2017

Recepção: 08 Outubro 2017

Aprovação: 21 Novembro 2017

Resumo: O objeto deste texto é a ?juventude? enquanto categoria. São apresentados processos que confluíram para emergência da ideia de jovem violento, fazendo deste não só uma parcela da população, mas um problema, uma questão social a ser gerido e através do qual se tem produzido formas de intervenção estatal junto a territórios e populações pobres. Com efeito, nas representações correntes, os jovens de periferias são percebidos, simultaneamente, como as principais vítimas e agentes da violência. Sinalizo para o fato de como essa representação sobre a juventude pobre que seria também violenta ganha materialidade em documentos oficiais de segurança pública. Argumento, portanto, que a mobilização recorrente e central da categoria ?juventude? ? com adjetivos como ?vulnerável?, ?violenta? ou ?pobre? - tem funcionado como um elemento de reconfiguração e reprodução da lógica, já antiga, que relaciona pobreza e violência linearmente, exatamente por ser constituída como público alvo privilegiado tanto das políticas de combate quanto de prevenção à violência.

Palavras-chave: Juventude, Violência, Pobreza, Gestão estatal, Periferias.

Abstract: The object of this text is the "youth" as a category. I discuss processes that came together for the emergence of the idea of violent young people, making of this not only a portion of the population, but a problem, a social issue to be managed and through which forms of state intervention have been produced along poor territories and populations. Indeed, in the current representations, young people from peripheries are simultaneously perceived as the main victims and agents of violence. I point to the fact that this representation about the poor youth, who would also be violent, gains materiality in official documents on public security. I argue, therefore, that the recurrent mobilization of the category "youth" - with adjectives such as "vulnerable", "violent" or "poor" - has functioned as an element of reconfiguration and reproduction of the old logic that relates poverty and violence linearly, precisely because it is constituted as a privileged target audience both of combat and violence prevention policies.

Keywords: Youth, Violence, Poverty, State management, Peripheries.

1 Introdução

Este texto apresenta parte das análises e reflexões que venho desenvolvendo na minha pesquisa de doutorado, ainda em andamento, cuja questão central é refletir sobre as formas de gestão estatal da ordem sobre populações pobres, com especial atenção para a relação entre as políticas ?voltadas para o social? e as políticas de segurança. Entre março e julho de 2014 residi na Cidade de Deus e acompanhei a rotina administrativa, cursos, aulas, palestras e atividades do Centro de Referência da Juventude (CRJ) e do Programa Caminho Melhor Jovem (CMJ).

O CRJ é um programa da Superintendência de Políticas para a Juventude do Estado do Rio de Janeiro, destinado a jovens entre 14 e 29 anos, cujo objetivo é oferecer cursos, atividades esportivas e culturais para jovens, em comunidades de baixa renda. Apesar de não serem formalmente condicionadas ao processo de implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), a maior parte das unidades do CRJ está instalada em favelas ?pacificadas? [3]. O CRJ da Cidade de Deus tem também outra relação direta com o processo de ?pacificação?: a maior parte dos cursos oferecidos é ministrada por policiais militares cedidos pela UPP local. Já o Programa Caminho Melhor Jovem (CMJ), parceria entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o governo do estado do Rio de Janeiro, é destinado exclusivamente a áreas onde há UPP e tem como objetivo acompanhar jovens de 15 a 29 anos dessas áreas, desenvolvendo planos individuais para que se inseriam no mercado de trabalho e direcionem seus estudos.

O foco deste texto não é a etnografia da rotina desses Programas[4], mas refletir sobre questões colocadas e iluminadas a partir dessa experiência, mas que sinaliza para processos mais amplos. Se, inicialmente, a existência de dois programas com objetivos e públicos semelhantes me pareceu uma coincidência, ao longo da minha pesquisa de doutorado pude constatar que não se tratava de um acaso. De fato, me chamou a atenção a recorrência e a ênfase dada à categoria juventude nos planos, nas falas dos gestores e técnicos envolvidos em políticas públicas relacionadas à prevenção e ao combate à violência em áreas pobres e também nos programas CRJ e CMJ. Ou seja, procurando pelas formas de gestão da pobreza, me deparei com a categoria juventude, central e recorrente, sobretudo quando se trata dos temas da violência e da segurança pública em áreas e entre populações pobres.

Decorrem dessa constatação o objeto e o objetivo deste texto. O esforço aqui é refletir sobre a juventude como categoria construída, operacionalizada e mobilizada nas políticas de gestão da pobreza, especialmente aquelas destinadas ao combate e à prevenção da violência, ou seja, políticas de segurança e políticas ?voltadas para o social?. Mais precisamente, o objetivo é analisar os efeitos dessa mobilização crescente e recorrente da categoria juventude na articulação entre políticas de repressão e cuidado.

O dispositivo da juventude

Em um esforço de compreender a categoria juventude em sua positividade (os efeitos que produz, os discursos que mobiliza etc.), tenho pensado a juventude como um dispositivo, este entendido como um constructo teórico, na medida em que permite organizar a explicação de um processo particular. Foucault define o dispositivo como

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (FOUCAULT, 2000, p. 244).

Na mesma perspectiva, Deleuze remete à ideia de linhas (de visibilidade, de enunciação, de força, de subjetivação, de fuga). O dispositivo seria, então, esse emaranhado de linhas que se entrecruzam/misturam, configurando processos singulares de unificação, totalização, verificação, objetivação, subjetivação imanentes a ele; um dispositivo seria a multiplicidade desses processos operando.

Pensar a juventude como dispositivo permite falar de discursos, saberes, leis, políticas, sujeitos e classificações produzidas. Assim, na análise que pretendo desenvolver, a juventude não é tomada em sua realidade (conjunto de jovens), mas como um conjunto de relações, de feixes, de linhas, a partir e por meio do qual relações são produzidas e, ao mesmo tempo, produzem efeitos. Portanto, não tomo o fenômeno da juventude (e outros a ela associados), mas a juventude como fenômeno, como problema social e político, como questão. O que me interessa quando tomo a juventude como dispositivo é entender como e porque ela se torna uma questão, se constitui como um problema, como uma urgência, passando a interessar do ponto de vista político e, consequentemente, passando a constituir processos e efeitos, sobretudo no que se refere à classificação, normalização e produção de sujeitos. Assim, inspirada na abordagem foucaultiana, pensarei a juventude discursivamente, no sentido de que ela coloca coisas para funcionar, como bem explica Banens (2009)

Para Foucault, o discurso é produtor de realidade. [...] Ele não deixa dúvidas sobre o poder performativo, criativo, produtivo do discurso. [...] O dispositivo é essencialmente discursivo, o discurso é, acima de tudo, performativo. Em vez de proibir ou reprimir, ele cria, ele suscita, ele produz (p.22).

Para tanto, apresento a seguir um resgate histórico da ideia de juventude, refletindo sobre as condições de possibilidade para a sua emergência no fim do século XVIII, bem como sobre os significados associados a esse grupo e a constituição da juventude como parcela da população e sua inclusão na agenda política nas últimas três décadas. Em seguida, busco discutir como o discurso sobre a diversidade da juventude foi apropriado para legitimar uma associação entre jovens pobres e violência e se somou ao tema da violência urbana, culminando na construção de noções como jovem violento, jovem vulnerável, jovem em situação de risco social. Para ilustrar essa aposta, incluo, na quarta parte, excertos de planos e políticas de segurança pública e de prevenção à violência, além de trechos de entrevistas, que consideram o jovem como maior vítima, mas, concomitantemente, maior agente da violência.

2 Da ?invenção? da juventude à sua entrada na agenda política

As especificidades da juventude foram reconhecidas em outros tempos e em diversas sociedades (PERALVA, 1997). Entretanto, para Peralva (1997), na modernidade emerge um vínculo social particular ?através do qual a juventude aparece como configuração própria da experiência moderna? (p. 16). Com efeito, segundo Pappamikail (2010),

a juventude, tal como se concebe actualmente (na sua dupla vertente de fase da vida e categoria social e cultural), é um produto da modernidade. [...] É um processo lento, como são por definição os processos de mudança social, aquele que dá origem à constituição da juventude como grupo social abrangente e (quase) universal nas sociedades ocidentais contemporâneas. Com efeito, é justamente na encruzilhada de movimentos como o da crescente sentimentalização da infância e posterior atribuição da condição de indivíduo à criança/adolescente/jovem, com a expansão da escola moderna (com especial destaque para os segmentos secundários e universitários do ensino) enquanto espaço de socialização, interacção e aprendizagem de uso (quase) exclusivo de indivíduos jovens, que se criam as condições para a legitimação de um tempo específico no ciclo de vida, não produtivo (do ponto de vista do capital econômico), para a preparação da vida adulta (p. 397).

Mas é entre o fim do século XIX e início do século XX que começa a ser forjada a ideia de juventude que se consolidou ao longo do século XX, com os conteúdos que ainda hoje informam nossas representações sobre juventude. ?A juventude passa a ser associada a um período de emoções violentas, agressividade, instabilidade emocional e curiosidade sexual sem limite? (CASSAB, 2012).

É importante destacar que as ciências modernas contribuíram para reforçar e consolidar essa ideia, ao definirem a juventude e seus atributos e oferecerem respostas (soluções) para controlá-la. Notadamente a psicologia e as ciências da saúde assumem um papel importante na construção e consolidação da ideia de juventude associada a desvio, risco e instabilidade. Pappamikail (2010), destaca, nesse contexto,

o trabalho de Hall (1916 [1904]) sobre a adolescência, publicado no dealbar do século XX. A partir da sua abordagem ganhou força um paradigma linearista do desenvolvimento, que institui a juventude como um tempo feito de etapas sucessivas que levam a criança até à idade adulta, e que, grosso modo, se converteu numa base teórica hegemónica de análise dos fenómenos juvenis. Sublinhe-se, ainda, como aquele autor contribuiu fortemente para a associação da adolescência a um inevitável tempo de stress e tempestade, determinado por imperativos biológicos e psicológicos (p.398).

Portanto, certas características passam a ser consideradas específicas e definidoras da juventude, ?como rebeldia, desinteresse, crise, instabilidade afetiva, descontentamento, melancolia, agressividade, impulsividade, entusiasmo, timidez e introspecção? (COIMBRA et al, apud CASSAB, 2012). Dessa forma, consolida-se uma representação dominante da juventude na qual ela seria um risco à ordem moral (associação à ideia de desvio) e, ao mesmo tempo, como estando em risco (pela condição de fragilidade identitária). Assim, a juventude se torna um perigo não apenas para o indivíduo jovem, mas também para toda a sociedade.

Relaciona-se a esse processo a constituição de grande parte da sociologia da juventude, que, inicialmente, se constituiu como uma sociologia do desvio, tomando o jovem como aquele que se ?integra mal, que resiste à ação socializadora, que se desvia em relação a um certo padrão normativo? (PERALVA, 1997); uma perspectiva que entende o desvio como inerente à experiência juvenil.[5] Porém, há uma inflexão nas representações das fases do ciclo da vida, decorrente de importantes mudanças sociais e culturais contemporâneas, das quais as transformações nas relações de trabalho e o prolongamento da escolarização são provavelmente as mais importantes. Entretanto, Peralva (1997) alerta para o fato de não podermos tratar essas transformações como um simples alongamento ou redefinição do período e atribuí-las a transformações demográficas; ?são a estrutura e a composição dos atributos sociais da juventude, os modos de acesso à maturidade que se encontram modificados? (CHAMBOREDON, 1995, p. 17-18 apud PERALVA, 1997).

Para alguns autores, as gerações mais jovens não estariam mais tão comprometidas em chegar à idade adulta com um modelo pré-determinado, mas mais empenhadas em ?inventar (novas) formas de viver uma fase do ciclo de vida, conhecida como idade adulta, a partir dos principais traços culturais da (sua) experiência da juventude? (PAPPAMIKAIL, 2010, p. 403). Nesse processo, o jovem passou ?de promessa de futuro que era, em modelo cultural do presente? (PERALVA, 1997, p. 22).

Fraga & Iulianelli (2003) acreditam que esse processo está relacionado à crescente individualização e recolhimento na esfera privada, os quais produziram uma depreciação da experiência e da sabedoria dos mais velhos, possibilitando a valorização da juventude e seus atributos; ?os valores da juventude passaram a ser os mais desejados pelos indivíduos, projetando o tema da juventude sobre todas as faixas etárias? (p. 9).

É no bojo desse processo de emergência e de sua crescente importância para a sociedade contemporânea que a juventude se torna um ?recorte da população? (FOUCAULT, 2008), se constituindo, simultaneamente, como sujeito de direitos e público-alvo de políticas. Com efeito, é possível localizar na década de 1980 a expansão e o início de um processo de consolidação do tema da juventude na agenda política internacional.

O ano de 1985, por exemplo, foi escolhido pela Organização das Nações Unidas como o Ano Internacional da Juventude, tendo em vista ?as preocupações internacionais com o futuro, [que] implicavam a inclusão da juventude na agenda internacional? (IULIANELLI, 2003, p. 54); o tema da juventude eclode nesse período, marcado pela questão da delinquência.

Na virada dos anos 1980 para os 1990, as ideias de capital humano e desenvolvimento humano ganham força no léxico dos organismos internacionais, sobretudo no que se refere à pobreza e às ações para combatê-la. Nesse mesmo período, a ONU implementa um monitoramento da situação da juventude, a partir do qual mapearia a relação entre os problemas que afetam os jovens e a pobreza, com destaque para os países em desenvolvimento. Por isso, orientava para a criação de ações que promovessem o jovem à condição de agente ativo das mudanças referentes às questões de desenvolvimento e combate à pobreza[6].

Na segunda metade da década de 1990, a ONU promoveu diversas ações (programas, conferências, documentos etc.) visando à juventude, o que fez com que o tema também fosse incorporado à ?agenda social? do Banco Mundial. As ações da ONU e do Banco Mundial ganharam maior fôlego a partir de 1998, quando emerge o conceito de empoderamento. ?Empoderar, no que diz respeito à juventude, é torná-la agente ativo de transformações e desenvolvimento, em vez de ser considerada mero objeto passivo de programas iniciados externamente? (IULIANELLI, 2003, p. 65).

No Brasil, é na década de 1990 que se iniciam os esforços para o atendimento das demandas relativas à juventude. Entretanto, até o fim daquela década, as políticas de juventude no país são marcadas por duas características principais: 1) não são políticas específicas de e para a juventude, mas de variadas áreas (políticas de saúde voltadas para a população jovem; políticas de geração de emprego e renda voltadas para jovens etc.) e 2) são frágeis do ponto de vista institucional, em função da desarticulação e sobreposição de programas e ações. Sposito e Carrano (2003) destacam, ainda, como os conceitos de protagonismo juvenil e jovens em situação de risco social estão presentes e norteiam, a partir dos anos 1990, os documentos de órgãos do governo federal focados na juventude, acompanhando uma tendência internacional na forma de pensar a juventude.

Na passagem dos anos 1990 para os anos 2000, as discussões sobre juventude ganham mais força; é nesse período que se consolida a ideia da juventude como um grupo de experiência social específica. É elucidativo desse processo as grandes e importantes pesquisas sobre juventude produzidas pela UNESCO no Brasil em 1998, 1999, 2001 e 2002[7]. Além disso, nesse mesmo período, assistimos a um deslocamento na concepção norteadora sobre a juventude nos documentos das agências internacionais. Se até o fim dos anos de 1990 o jovem era visto como ator estratégico do desenvolvimento (protagonismo juvenil, empoderamento do jovem etc.), nos anos 2000 ele passa a ser visto como sujeito de direitos, os quais precisam ser atendidos sob o risco de afetar outras esferas, como a segurança e a economia.

No caso do Brasil, tal inflexão converge com a eleição do presidente Lula e a criação, em 2004, do Grupo de Trabalho Interministerial de Juventude, que identifica e discute os desafios e deficiências das políticas nacionais de e para a juventude. Em 2005, são criados a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), o Conselho Nacional de Juventude (CNJ) e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem). Em 2008, as ações federais destinadas à população jovem foram aglutinadas em um único programa, o ProJovem, que passou a contar com vertentes específicas.

Em 2010, foi aprovado o Projeto de Emenda Constitucional 048/2008, conhecido como PEC da Juventude, que institui o Plano Nacional de Políticas para a juventude. Em 2013, há um avanço no sentido de efetivar o Plano, sendo aprovado o Estatuto da Juventude, que estabelece o conceito de juventude que norteará as políticas: indivíduos com idade entre 15 e 29 anos. No mesmo ano, como resposta ao problema dos altos índices de morte entre jovens, ?o governo federal lançou o Plano Juventude Viva - Plano de Prevenção à Violência Contra a Juventude Negra, uma iniciativa que busca ampliar direitos e prevenir a violência que atinge a juventude brasileira? (MAPA DA VIOLÊNCIA JUVENTUDE DO BRASIL, 2014, p. 9-10).

3 Diversidade, diferença e desigualdade: produzindo o jovem violento

Paralelo ao processo de consolidação da juventude como sujeito de direito se dá o debate sobre a heterogeneidade que marcaria essa parcela da população. Diversos autores (ABRAMOWAY & CASTRO, 2005; NOVAES, 2009; IULINELLI, 2003), chamam a atenção para o fato de que esse não é um segmento homogêneo da população, colocando a pergunta: ?Como falar em ?juventude? se os jovens vivem condições sociais heterogêneas e desiguais?? (NOVAES, 2009, p. 11).

Margulis e Urresti (1996), por exemplo, sugerem a noção de moratória para pensar as diversidades, diferenças e desigualdades que perpassam a juventude, afirmando que o desafio consiste em não considerar apenas os critérios biológicos de idade para definir juventude, nem apenas os critérios sociais. Então, ?para se pensar as peculiaridades da juventude em relação às outras gerações e mesmo às especificidades internas aos diversos modos de se vivenciá-la, os autores trabalharam com as noções de moratória social e moratória vital? (PEREIRA, 2007, p. 14). A moratória social, bastante ligada ao tempo e ao dinheiro, seria desfrutada por jovens de setores sociais privilegiados, umas vez que se refere a um período da vida, antecedente à maturidade biológica e social, no qual há uma maior permissividade e o ingresso na vida adulta é cada vez mais postergado. Os jovens de camadas pobres teriam sua moratória social bastante reduzida, tendo em vista suas obrigações familiares e sua entrada precoce no mercado de trabalho. Por outro lado, há a moratória vital, complementar à social, que se refere a uma espécie de tempo crédito temporal, ?capital energético? (comum a todas as classes) que os não jovens não teriam mais. Para os autores, a moratória vital nos permite ver as diferenças (de classe, culturais, de gênero, de raça) no modo de ser jovem:

Em conseqüência, pode-se reconhecer a existência de jovens não juvenis ? como é, por exemplo, o caso de muitos jovens dos setores populares que não gozam da moratória social e não portam os signos que caracterizam hegemonicamente a juventude -, e não jovens juvenis ? como é o caso de certos setores médios e altos que vêm diminuindo seu crédito vital excedente, mas são capazes de incorporar tais signos (MARGULIS & URRESTI, 1996 apud PEREIRA, 2007).

Ainda sobre essa diversidade que perpassa a juventude, há uma discussão acerca das distintas representações sobre esse grupo. Novaes (2009) sugere:

A sociedade contemporânea é ?juventudocêntrica? e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, muito crítica em relação a seus jovens. São dois lados da mesma moeda. De um ângulo, a juventude hoje é vista como a expressão do bem. Seu valor simbólico positivo se expressa através da valorização da beleza, da saúde, da coragem, da capacidade de indignação. Todos querem permanecer jovens. Fisicamente, procura-se adiar o envelhecimento. Mentalmente, busca-se permanecer ?jovem de espírito?. De outro ângulo, a ?juventude? também é vista como o lugar privilegiado para a expressão de todo mal estar social. Provoca inquietações e evoca ?problemas sociais? tais como violência, ócio, desperdício e irresponsabilidade (p. 11).

Esse paradoxo das representações contemporâneas da juventude poderiam ser elucidado pelos mitos sobre a juventude, elencados e descritos por Novaes (2009), baseada nas análises de Braslavsky. Segundo a autora, considerando o contexto atual, é possível sugerir três mitos principais e coexistentes sobre a juventude. O primeiro seria o ?mito da juventude dourada?, que encara o jovem como aquele que tem ?tempo livre para lazer, gozar o ócio, cultivar o corpo. É ser beneficiário de um período de ?moratória social? sem angústia ou responsabilidades? (p. 12). O segundo é o ?mito da juventude cinza?, segundo o qual os jovens são ?desocupados, delinquentes, apáticos. Depositários de todos os males, os jovens seriam a perfeita expressão das leis da competitividade, da lógica do lucro, do cinismo da sociedade do espetáculo. [...] Por tudo isto, são sempre ?suspeitos?? (p. 12). O terceiro é o ?mito da juventude branca?, que tem um olhar mais idealizado, supondo que ?em contraposição às visões estreitas e aos vícios políticos de gerações anteriores, nesta juventude estaria a criatividade, inventividade e energia da sociedade? (p. 12).

O interessante aqui é observar que os discursos sobre a juventude e sua diversidade revelam recortes bastante específicos dos jovens e não se referem a todos de modo indistinto. Além disso, é importante notar que certos discursos sobre a juventude se sobrepõem a outros, de acordo com o momento histórico. Sem dúvida, atualmente, o discurso predominante sobre a juventude é bastante negativo. De fato, diversos autores (SPOSITO; CORROCHANO, 2005; SPOSITO, 2003; PEREIRA, 2007; NOVAES, 2009) chamam a atenção para o fato de que, nas últimas décadas, os jovens têm aparecido cada vez mais relacionados ao tema da violência, seja nas representações, nas estatísticas e, eu acrescentaria, nas políticas públicas. Os jovens têm sido vistos, simultaneamente, como principais vítimas e principais responsáveis pela violência. Entretanto, tal discurso se refere a uma parcela bem definida dos jovens: aqueles pobres e moradores de áreas pobres. De fato, os jovens que aparecem nos planos e nas políticas de combate e prevenção à violência que tenho analisado são aqueles ligados ao ?mito da juventude cinza?. E esta especificação, essa definição do jovem que está ligado à violência, me parece ser a expressão de uma apropriação da discussão sobre a diversidade, a diferença e a desigualdade que perpassam a juventude. A construção da imagem do jovem violento tem sido possível e está ancorada exatamente quando se fala de condições sociais desfavoráveis, sujeitos em situação de risco social ou vulnerabilidade social, territórios vulneráveis etc.[8]

Castro (2013), em sua pesquisa sobre a implementação do Programa Escolas da Paz, da UNESCO, nos mostra como esse Programa, dirigido à juventude, é perpassado pela ?formulação (invenção) de um problema - o jovem violento? (p. 13), para o qual são, então, pensadas resoluções e são elaboradas políticas públicas. Nesse sentido, as pesquisas, estudos e documentos das agências internacionais ou do governo federal, os dados estatísticos sobre juventude e sobre a relação entre violência e juventude, além de revelarem um processo, são cruciais para a elaboração de políticas públicas. De acordo com Castro (2013, p. 29), ?para a elaboração de programas sociais e ou políticas públicas [é] preciso não somente definir um objeto de intervenção (público-alvo) como também construí-lo como um problema social, político e ideológico, a partir de procedimentos de inspiração cientifica?. O autor salienta ainda que ?estes problemas foram formulados pelas pesquisas da Unesco-Brasil, a partir da noção de que a violência é o novo paradigma da contemporaneidade, e de que o jovem é vítima e protagonista de ações violentas? (p. 29).

É importe frisar uma espécie de dupla inflexão no discurso sobre o jovem. Se até os anos 1960 e 1970 as representações sobre a juventude que predominavam eram aquelas relacionadas à transformação política e à capacidade crítica e de mobilização social, desde os anos 1980 há uma forte representação negativa dos jovens em geral e relacionando aqueles mais pobres à questão da violência. Uma segunda inflexão, complementar à primeira, parece estar ligada ao próprio conteúdo dessa representação negativa de uma parcela da juventude. Não é nova a clivagem na representação da juventude que via os jovens provenientes de classe populares como uma ameaça e que não respondiam às instancias tradicionais de socialização. Entretanto, hoje, o conteúdo dessa percepção mudou sensivelmente: a representação de desvio quase inevitável desses jovens pobres é substituída pela imagem do desvio arraigado, inerente e acompanhado de violências incontroladas e ligadas à grande criminalidade (DESAGE et al, 2015) [9].

No Brasil, tal associação encontra um contexto favorável ao seu desenvolvimento entre as décadas de 1980 e 1990. Com o aumento dos casos de crimes e conflitos violentos nas grandes cidades do país, à época, o tema da violência se consolida no debate político e social. Entretanto, Machado da Silva (2008; 2010; 2011) sugere que não tomemos a violência urbana como uma categoria de análise para explicar determinado fenômeno ou processo, mas, diferentemente, entendamos a violência urbana como o centro de uma gramática, uma linguagem prática coletiva acerca do tema da ordem social e da segurança, que passa a ser explicado e entendido cada vez mais (e exclusivamente) como o risco de quebra da continuidade das rotinas cotidianas, afetando sentimentos de segurança individual e patrimonial.

Desse modo, a violência urbana não é uma categoria utilizada para explicar ou se referir ao aumento dos crimes violentos nas grandes cidades brasileiras (os quais têm, de fato, aumentado). Diferentemente, é entendida como uma forma especifica de se construir a compreensão prática e discursiva da questão da segurança, que se tornou uma obsessão e uma das principais questões da agenda pública. No entanto, falar da violência urbana dessa perspectiva não significa sugerir que ela seja uma fantasia, pois tem implicações reais. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, ela está, por um lado, ligada ao crescimento dos episódios de violência nas últimas décadas e sua expansão para áreas antes razoavelmente protegidas e, por outro, tem como consequência a demanda por repressão, isolamento e segregação, com efeitos sobre as políticas de segurança e as práticas policiais (MACHADO DA SILVA, 2010).

Como afirma Feltran (2014), ?a tematização pública da ?violência urbana? representaria, assim, um modo ativo de produzir realidade e lhe ofertar conteúdos, que ao mesmo tempo oculta aquilo que existe no mundo, de modo alheio aos seus próprios termos? (p. 2). Nessa realidade produzida, a violência é associada a certos corpos, territórios, vestimentas, músicas etc. Apesar de impreciso do ponto de vista conceitual, situar a violência no cerne da representação sobre os pobres e os territórios de pobreza urbanos é politicamente preciso, na medida em que torna possível tomar a parte pelo todo, associando toda a periferia às imagens de ?indignidade, sujeira, desordem, crime, violência, maldade, abjeção? (Idem, p. 4).

Portanto, para a discussão aqui empreendida, vale destacar três processos que se deram no mesmo momento histórico: a consolidação da juventude como parcela específica da população (sujeito de direitos, protagonista e público-alvo); o crescente debate sobre a pluralidade da juventude, apropriado para subsidiar as representações sobre certos grupos de jovens; a consolidação da gramática da violência urbana como forma de compreensão da ordem social e a crescente demanda por repressão.

A convergência desses processos, por sua vez, não tem produzido efeitos apenas nas representações e discursos sobre a juventude, mas também tem informado a forma de pensar e implementar políticas públicas, especificamente aquelas destinadas e/ou relacionadas ao tema da violência.

4 O jovem violento aparece nas políticas

Nos planos de políticas relacionadas à prevenção e combate à violência que analiso, os jovens que aparecem estão claramente vinculados às representações de violência e são claramente identificados: pobres, moradores de periferias e favelas (as chamadas áreas vulneráveis), que, por isso, teriam maiores chances de ingressarem em atividades criminais e oferecer perigo. O Plano Nacional de Segurança Pública de 2002, por exemplo, confere grande centralidade aos jovens pobres de periferias e favelas, os quais foram tomados como seu ?público-alvo? preferencial, como pode ser constatado no trecho abaixo:

É urgente que os poderes públicos, em todas as esferas, criem projetos que funcionem como fontes capazes de atrair os jovens para a sociabilidade construtiva e solidária, competindo com o tráfico e sua sedução dupla, material e simbólico-afetiva. Uma bandeira a nos guiar: disputar menino a menino, menina a menina, com o tráfico. Simultaneamente, a polícia, renovada, cumpriria seu papel, restringindo o raio de ação do tráfico e das malhas criminosas (INSTITUTO CIDADANIA, 2002, p. 9).

No mesmo Plano, no tópico ?estratégias comunitárias?, ficam evidentes os focos prioritários desse Plano:

Estimular que as polícias estaduais promovam debates e abram canais permanentes de diálogo com as lideranças e os movimentos comunitários legítimos, especialmente aqueles organizados em periferias e favelas de grandes centros urbanos, com o propósito de construir alianças capazes de ao mesmo tempo mudar o comportamento da polícia em relação a essas populações e combater o crime, livrando essas comunidades do poder dos marginais e dos falsos benefícios dos bandidos, bem como investir em organização e em gestão comunitária e na aliança entre os movimentos sociais e a escola. [...] Nesse contexto, os jovens, especialmente aqueles situados na faixa etária de 14 a 24 anos, se apresentam ao mesmo tempo como as vítimas mais prováveis da violência, mas também como os violentos mais prováveis. A sociedade brasileira não foge a essa tendência moderna. [...] Para mudar esse triste quadro, as ações propostas logo a seguir procuram, ao lado de conferir cada vez mais praticidade ao Estatuto da Criança e do Adolescente, caminhar na direção principal de reinserir os jovens em suas comunidades, despertando-os para uma efetiva participação que inclua o sentido de responsabilidade, sonhos, desejos de realizações e felicidade (INSTITUTO CIDADANIA, 2002, p. 18-19, grifos nossos).

Em outro trecho, são apresentados os pontos nodais da questão da violência e da juventude:

Para que se compreenda a dinâmica em que tantas vidas estão sendo prematuramente sacrificadas, é preciso reunir os seguintes ingredientes: (a) acolhimento familiar, comunitário e escolar deficientes; (b) falta de perspectivas de integração social plena; (c) ausência do Estado nos territórios urbanos pauperizados; (d) constituição, nas periferias, vilas e favelas, do varejo do tráfico de armas e drogas como fonte de recrutamento para atividades ilegais; (e) desdobramento do tráfico em ampla variedade de práticas criminais, graças à disponibilidade de armas. Esses fatores combinados, afetando segmentos da juventude pobre, fazem com que determinados grupos - certamente, uma minoria - sejam atraídos pela sedução do tráfico e se liguem à organização criminosa. Com triste freqüência, essa ligação condenará parte significativa desses jovens a um itinerário de delinqüência e à morte precoce e violenta (Idem, p. 6).

E o documento prossegue na análise:

Juventude pobre recrutada por unidades locais do tráfico de armas e drogas, responsável pelo varejo desse comércio ilegal: aí está o centro de uma de nossas maiores tragédias nacionais, o nervo do processo autofágico e genocida. Os crimes que têm essa origem não são apenas os homicídios que decorrem das rivalidades entre os grupos varejistas. Os roubos à mão armada, os roubos seguidos de morte, os seqüestros, em todas as suas variações, os roubos a residências, bancos e ônibus, os roubos e furtos de veículos, os roubos de cargas, todas essas práticas são estimuladas e, em muitos casos, viabilizadas pela disponibilidade de armas, traficadas por iniciativa e financiamento dos mercadores de drogas. O tráfico coopta um exército de reserva para a indústria do crime e determina um nível intenso de atividade criminosa, em função da conveniência econômica de preencher a capacidade ociosa do armamento. Nesse mercado clandestino, por analogia com a lógica da economia, a produtividade perversa do crime tende a ser elevada até alcançar a plena utilização da capacidade produtiva instalada - o armamento -, empregando a mão de obra mobilizável, nesse caso os recrutas seduzidos principalmente no varejo das drogas (Idem, p. 7).

Na Lei 11.707/2008, que modifica a lei que instituiu o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI), também é possível perceber como o foco do Programa coaduna com as propostas do trecho do Plano Nacional apresentado acima:

I - foco etário: população juvenil de 15 (quinze) a 24 (vinte e quatro) anos; II - foco social: jovens e adolescentes egressos do sistema prisional ou em situação de moradores de rua, famílias expostas à violência urbana, vítimas da criminalidade e mulheres em situação de violência; III - foco territorial: regiões metropolitanas e aglomerados urbanos que apresentem altos índices de homicídios e de crimes violentos; e IV - foco repressivo: combate ao crime organizado (NR) (BRASIL, 2008).

Em um nível mais localizado, os textos do CRJ e do CMJ e as falas de técnicos e professores revelam como essa lógica também perpassa esses programas. O trecho de uma entrevista com um ex-gestor da Superintendência de Juventude do Estado do Rio de Janeiro, é elucidativo dessa vinculação entre juventude pobre e atividades criminais:

E o jovem foi visualizado enquanto um setor mais prioritário. Por que, veja só... [...] Você tinha ali um seguimento que estava demandando políticas públicas e uma perspectiva de transformação muito real, mas que também estava em disputa... vamos dizer assim, o jovem também era um elemento dessa estrutura do tráfico que fazia tanto mal para aqueles lugares (Trecho de entrevista com um ex-gestor da Superintendência de Políticas para a Juventude do Estado do Rio de Janeiro).

O mesmo gestor também explica a relação dessa política voltada para o social e a política de segurança da ?pacificação?:

A gente foi tentando desenhar uma política que desse espaço também na agenda da pacificação, mas do ponto de vista que também olhasse o cidadão. Porque tinha ali já uma questão de preocupação, o como seria a retomada do Estado nesses territórios... [...] E começou esse desenho da política social dentro da agenda da ?pacificação?. [...] E a gente começou a desenhar, a partir da ?pacificação?, da agenda que era uma das ações de prioridade do governo na época, quais seriam as nossas políticas dentro desse contexto (Trecho de entrevista com um ex-gestor da Superintendência de Políticas para a Juventude do Estado do Rio de Janeiro).

Ainda sobre o CRJ, um policial que ministra curso para moradores explicou como o fato de ser policial interfere e contribui na sua prática de professor, evidenciando como a lógica policial pode incidir na formação daqueles indivíduos:

Eu aqui, eu ajo como policial sem eles perceberem. Como? Além de dar aula, eu passo pra eles noções de cidadania, de respeito, de obediência. Muitos jovens chegam aqui sem freio, sem limite. E eu converso muito com eles sobre drogas, sobre abordagem (todos sabem que eu sou policial). [...] Então eu acabo mudando o jeito deles pensarem, do jeito deles verem o policial, como agirem em certas situações. Então, eu vou incutindo isso sem eles perceberem. Eu não chego e falo ?hoje eu vou ensinar vocês a como agirem...? Não! É num bate-papo informal, ou durante a aula ou antes da aula ou após a aula, eu aproveito um gancho algum comentário (Trecho de entrevista com policial que ministra curso no CRJ)

As informações oficiais do Caminho Melhor Jovem também relacionam atividades ligadas ao tráfico e os jovens moradores de favelas, construindo a justificativa para o Programa:

Nos últimos anos a desativação de redes de narcotráfico e a ocupação de favelas por unidades pacificadoras tem restituído a cidadania a áreas em que antes o estado não estava presente. Embora os investimentos e as ações públicas estejam sendo instalados paulatinamente nestas comunidades, os jovens representam um seguimento que dispõe de poucos recursos e oportunidades que lhes permita construir uma trajetória de vida plena e digna. Jovens destas comunidades carentes vivem em condições que prejudicam o seu desenvolvimento e seu futuro, já que eles continuam sendo as principais vítimas da violência (BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO, 2013).

Se, por um lado, essas políticas e programas são produto de um processo pelo qual o jovem tem se tornado ?sujeito de direito?, por outro, elas também produzem efeitos. Há efeitos quando o léxico da violência é mobilizado para se referir à juventude pobre, moradora de periferias e negra, referência feita por intermédio das ideias de risco e vulnerabilidade. Também há implicações quando a juventude pobre e moradora de periferias é evocada sempre que se fala e se propõe ações de combate à criminalidade e à violência. E o efeito tem sido reforçar a mesma lógica que informa essas políticas; uma lógica que associa o jovem pobre à violência e, no limite, tende a criminalizá-lo.

5 Conclusão

Compreender como a juventude tem sido produzida como um recorte na população, com atenção para os discursos e saberes sobre os jovens/a juventude, tem me permitido pensar sobre os mecanismos de gestão estatal da população pobre, que, parece-me, estão ligados a um discurso que relaciona, de modo bastante específico, violência, pobreza, juventude, vulnerabilidade e risco. Com efeito, a categoria juventude tem figurado como um mediador dos discursos que associam, de forma linear, pobreza e violência. Tal processo foi possível devido à confluência de fatores, dos quais destaquei a consolidação da juventude como parcela da população com especificidades, necessidades e direitos específicos; o crescimento do debate sobre a heterogeneidade que marca a juventude; a emergência da violência urbana como gramática que orienta a percepção das questões ligadas à ordem urbana.

Exatamente quando a juventude se constitui em uma questão, exatamente quando se começou a falar mais e mais sobre ela, exatamente quando se passou a produzir estudos e teorias sobre essa parcela da população, é que foi possível classificar os jovens e produzir a ideia do jovem violento - social, econômica e territorialmente localizado. É evidente que as distinções de classe, gênero e raça entre os jovens são bastante antigas, mas o que pretendi argumentar é como essa clivagem ganha conteúdos distintos a partir dos anos 1980 e contornos mais bem demarcados, tendo como um dos efeitos colocar o jovem pobre (vulnerável) no centro das políticas de combate, controle e prevenção à violência. Tais políticas, por sua vez, produzem efeitos na medida em que reforçam a própria lógica que as orientou. E isso me parece ser o dispositivo da juventude em funcionamento, incitando que falemos cada vez mais da juventude, para, assim, defini-la, classificá-la e, então, controlá-la, o que significa cuidar com políticas ?voltadas para o social?, reprimir com políticas de segurança e combiná-las a depender do lugar que o jovem ocupa nessa classificação.

Entretanto, a ideia de jovem violento acomoda uma diversidade de jovens, se referindo àqueles envolvidos em atividades criminais e violentas e àqueles que, por serem pobres, vulneráveis, estariam sujeitos a ingressarem nessas atividades. Assim, entre os supostos jovens violentos temos um espectro que os classifica e, consequentemente, ações e políticas destinadas a cada um deles. Mas todo esse espectro é organizado a partir de uma lógica que vê o jovem da favela ou como um risco efetivo (porque já está na vida do crime) ou como risco em potencial (porque a qualquer momento pode ingressar na vida do crime, por estar em situação de ?risco social?). Desse modo, é possível que as políticas de determinado e repressão (que se traduzem muitas vezes em violência) possam coexistir, se combinar e se alternar.

Desse modo, ao terem como foco privilegiado a ?juventude? em situação de ?vulnerabilidade social?, as políticas de segurança e aquelas ?voltadas para o social, ao se articularem, operam como uma resposta à representação dominante que percebe os jovens de periferias urbanas como as principais vítimas e, simultaneamente, como agentes da ?violência urbana? (MACHADO DA SILVA, 2010). Assim, quando se trata do tema da violência, a ?juventude?, ao ser mobilizada como categoria, tem funcionado como um elemento de reconfiguração e reprodução da lógica, já antiga, que relaciona, linearmente, pobreza e violência.

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Notas

[1] Este texto apresenta resultados da pesquisa de doutorado no âmbito do PPGS UFSCar e do CEM e conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no 40° Encontro da ANPOCS, em outubro de 2016.
[2] Doutoranda em Sociologia da UFSCar.
[3] Em linhas gerais, as UPP são unidades policiais instaladas de forma permanente, sem previsão de retirada e com foco na retirada das armas, não na erradicação do tráfico de drogas, por meio da superação das intervenções pontuais. O foco são comunidade pobres, com alto grau de informalidade e onde grupos criminosos ligados ao mercado de drogas estão instalados e dominam os territórios.
[4] Análises sobre a etnografia realizada junto ao CMJ e ao CMJ podem ser encontradas em Motta, 2016 e Motta, 2017.
[5] É interessante notar como essa perspectiva marca, por exemplo, a corrente funcionalista, ?que perceberia a juventude a partir de uma abordagem quase sempre geracional, pode-se dizer que o que eles denominaram como uma subcultura juvenil cumpriria a função de promover a transição para a condição social adulta (PARSONS, 1942). Daí o interesse pelas subculturas desviantes e o tema da delinqüência juvenil tão forte nos estudos de juventude, principalmente nos Estados Unidos, que apontam para a necessidade de se integrar tais grupos juvenis ao padrão de normalidade? (PEREIRA, 2007, p. 7).
[6] Sobre a consolidação do discurso do protagonismo juvenil entre as agências internacionais e nas políticas públicas, ver Magalhães (2006).
[7] Castro (2013) realiza uma interessante análises dos documentos relativos à juventude produzidos pela UNESCO nesse período.
[8] Assim como ocorreu no início do século XX, quando emerge a noção de juventude, tal discurso transborda para as produções acadêmicas; sem dúvida, o tema da violência tem grande centralidade nos estudos sobre juventude e o tema da juventude está fortemente presente nos estudos sobre violência urbana. Todavia, esse não é um processo de mão única, uma vez que as produções no campo acadêmico também informam e/ou reforçam os discursos prevalecentes sobre a juventude.
[9] As discussões de Misse (2010) sobre a sujeição criminal podem contribuir para pensarmos sobre os significados e explicações atribuídos à relação entre violência e juventude, na medida em que nos chamam a atenção para a existência de uma estratificação social e de condições sociais específicas que determinarão os sujeitos passiveis de sujeição criminal. Segundo o mesmo autor, a sujeição criminal ?é o resultado, numa categoria social de indivíduos, de um processo social de constituição de subjetividades, identidades e subculturas? (p. 24). Para a discussão que aqui desenvolvo, é importante atentar para a dimensão do argumento de Misse (2010) que destaca uma seleção social da sujeição criminal. Assim, é possível afirmar que há ?afinidade entre certas práticas criminais - as que provocam abrangente sentimento de insegurança na vida cotidiana das cidades - e certos ?tipos sociais? de agentes demarcados (e acusados) socialmente pela pobreza, pela cor e pelo estilo de vida? (p. 18).


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