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Elementos de análise das relações internacionais no pensamento de Celso Furtado: os bloqueios externos ao desenvolvimento
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 2, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 2, 2017

Recepção: 13 Outubro 2017

Aprovação: 21 Novembro 2017

Resumo: :

O ensejo do trabalho apresentado é demonstrar como algumas configurações advindas de fora das fronteiras de um Estado contribuem para seu encaixe nas relações que se estabelecem entre centro e periferia no pensamento de Celso Furtado. Para isso, não pretendemos apresentar o autor brasileiro como um teórico ou pensador das relações internacionais; antes, nosso esforço é no sentido de captar elementos de análise das relações internacionais a partir de seu pensamento, tais como a articulação entre centro e periferia, que condenam alguns países ao subdesenvolvimento e, também nesse sentido, como algumas políticas adotadas por países do centro agem de modo a bloquear o desenvolvimento dos países nessa mesma periferia, exemplo que é captado pela explicação de Furtado sobre a ação dos Estados Unidos em relação à América Latina, o qual, ao incluir em sua concepção de segurança o desenvolvimento desta última região, fá-lo através de uma ideia própria de desenvolvimento que termina por aprofundar o subdesenvolvimento latino-americano.

Palavras-chave: Estruturalismo latino-americano, Subdesenvolvimento, América Latina, Celso Furtado, Relações Internacionais.

Abstract: :

The aim of this paper is to show how some settings come from outside a state?s border contribute to its fitting to the relations stablished between the center and the periphery in Celso Furtado?s thought. For such a purpose, we do not intend to present the Brazilian author as an international relations theoretician or thinker; rather, out effort is towards capturing elements for international relations analysis departing from his thought, such as the articulation between center and periphery, which condemns some countries to underdevelopment and also how some policies adopted by the countries in the center also act towards blocking the development of the countries in the periphery, example captured by the explanation of Furtado?s about the action of United States towards Latin America, which including in its conception of security the development of the latter region, departs from its own idea of development, what ends up deepening the Latin American underdevelopment.

Keywords: Latin American structuralism, Underdevelopment, Latin America, Celso Furtado, International Relations.

Palabras clave: Estructuralismo latinoamericano, Subdesarrollo, América Latina, Celso Furtado, Relaciones Internacionales

1 INTRODUÇÃO

Considerado certamente um dos mais importantes e criativos pensadores brasileiros, Celso Furtado (1920-2004) graduou-se em Direito e teve sua formação em nível de pós-graduação em Economia, área de que parte para elaborar sua obra, tanto como intelectual como homem público. Entretanto, contrário à compartimentalização das ciências sociais, sua obra deliberadamente perpassa aspectos históricos, sociológicos e das relações internacionais, além dos aspectos econômicos, visando a compreender o fenômeno do subdesenvolvimento a partir de uma região subdesenvolvida do globo: a América Latina. Para isso, será de profunda importância, para sua formação intelectual, sua passagem pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), onde entrará em contato com diversos pensadores da região, entre eles, Raúl Prebisch, cujo pensamento imprimirá fortes traços na formulação daquilo que Furtado chamaria de Teoria do Subdesenvolvimento.

O objetivo deste texto é captar a importância das relações internacionais dentro do pensamento de Furtado, demonstrando para isso os elementos que o autor usa para analisar a realidade internacional e o mecanismo como esta age para se tornar um ?obstáculo externo? para o desenvolvimento da periferia do sistema, em particular da América Latina, foco imediato de muitas obras do autor. Para tanto, traça-se uma estratégia que se acredita ser a mais acertada: apresentaremos, num primeiro momento, a discussão sobre inovação tecnológica, que é um dos aspectos mais importantes das relações que se estabelecem no mundo após a Revolução Industrial, levando a determinada divisão internacional do trabalho; em seguida, apresentaremos um panorama do sistema centro-periferia, tanto no pensamento de Raúl Prebisch e como ele irradia e cria consistência no conjunto teórico elaborado por Celso Furtado; após isso, é apresentada uma discussão de alguns pontos da teoria do subdesenvolvimento, com o objetivo de compreender como se conceitua o fenômeno, e quais os termos para melhor se tratar dele. Por fim, as últimas seções constituem a análise das relações internacionais como contida em duas obras do autor que tratam especificamente do assunto: ?Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina? (1968) e ?A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina? (1973). Desses livros, tentaremos extrair os elementos de análise das relações internacionais da época tanto em termos de como se concebe o cenário internacional do momento analisado, quanto em termos das relações travadas entre os Estados Unidos, um dos polos de poder do sistema, com a América Latina, sobre quem o país do norte exerce uma forte dominação, cujos termos serão melhor explicitados adiante. De qualquer maneira, o trabalho tenta, a partir de elementos básicos do pensamento de Celso Furtado, analisar o problema do subdesenvolvimento a partir dos fatores externos que o reforçam, diferentemente das análises que tendem a focar-se em aspectos internos das realidades estudadas. Da mesma forma, não há um recorte específico de um único país (embora a maioria das análises de Furtado se foquem, naturalmente, no Brasil): procuramos entender aspectos mais gerais que se relacionam com a América Latina devido ao caráter mais singelo pretendido a este texto.

Embora as relações internacionais não constituam tema de importância imediata para o autor (justificando, portanto, o porquê de buscarmos em seu pensamento ? elementos de análise das relações internacionais? e não uma teoria delas), sua proposta de estudo visou a ?captar o envolver histórico no quadro de relações estruturais, a começar pelas internacionais? (FURTADO, 2007, p. 16), o que torna os objetivos deste trabalho possíveis de se atingir. A tentativa de ligar o pensamento de Furtado às relações internacionais já foi feita por outros autores: é o caso da ?síntese da evolução do pensamento latino-americano em relações internacionais? feita por Raúl BERNAL-MEZA (2005). Para o autor, tanto Furtado como Prebisch são parte de um ?pensamento latino-americano de relações internacionais?. Embora alguns dos argumentos utilizados por Bernal-Meza sejam consonantes com os que utilizaremos neste trabalho, nosso esforço pode ser considerado um pouco mais modesto: enquanto o autor argentino busca expor uma síntese do pensamento latino-americano em relações internacionais, o presente trabalho tem por pretensão apenas expor alguns elementos de análise do dito assunto presentes no pensamento de apenas um autor: um objetivo certamente mais simples, mas nem por isso menos importante.

O pensamento de Celso Furtado se vincula ao que se chama de escola estruturalista latino-americana, que propõe, entre outros pontos, dar importância a aspectos não-econômicos dos modelos macroeconômicos ? nesse sentido, compreende-se o caráter ?eminentemente sociológico? do pensamento de Celso Furtado (MALLORQUÍN, 2010). Consonância a este argumento é encontrada no próprio Furtado, que, em 1949, em resenha a um livro de Richard Lewinsohn, afirma categoricamente: ?o problema econômico hoje já não pode ser formulado independentemente do do poder político? (FURTADO, 1949, p. 106).

A atividade intelectual de Celso Furtado é muito ampla, e seu período na Comissão Econômica para a América Latina parece marcar profundamente o pensamento do autor. Hélio JAGUARIBE (2008), por exemplo, divide sua vida em cinco momentos: a) a sua formação, que vai até 1949, quando o autor ingressa na CEPAL; b) seu período de atividade na CEPAL, onde pode estar em contato com Raúl Prebisch, que exercerá grande influência sobre seu pensamento, além de esta atividade poder prover-lhe grande conhecimento sobre a situação dos países da América Latina; c) o período de atividades no Brasil, de 1958 até o golpe de 1964, quando o autor participa da vida pública do país através da SUDENE e do ministério do planejamento; d) o período do exílio do autor, desde o golpe de 1964 até a 1985, período de grande atividade intelectual passado majoritariamente na Sorbonne; e, por fim, e) o período que encerra a última fase da vida do autor, de seu retorno ao Brasil até sua morte em 2004, marcada também pela atividade pública. É interessante notar que, para os fins deste trabalho, as fases c) e d) são as mais importantes, pois as obras de referência deste trabalho se encontram majoritariamente nestes períodos; entretanto, a vasta obra de Furtado e sua vida pública são altamente coerentes.

2 A TECNOLOGIA E O AVANÇO DA TÉCNICA

Um dos aspectos que parece ser crucial na fundamentação das análises de Furtado se dá acerca do papel do avanço tecnológico na produção de bens e na modificação da estrutura social das populações que dele se valem. Embora tal fato seja altamente importante, é preciso cuidado para não atribuir-lhe importância superior à que tem: as tecnologias, assim como as ideologias, foram fatores utilizados pelas forças sociais em confrontação (FURTADO, 2007, p. 21). Entretanto, é impossível compreender-se a formação da divisão internacional do trabalho da qual resulta o subdesenvolvimento sem passar pela questão do avanço das técnicas de produção, poupadoras de mão-de-obra: de fato, a dualidade tecnológica, com setores modernos e de subsistência, ambos interdependentes, são características que nos permitem, ao lado da pouca diversificação do aparelho produtivo, identificar os problemas específicos do subdesenvolvimento (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 174). Para Furtado, a relação existente entre o desenvolvimento e o avanço da técnica nos países que primeiro se valeram dela parecem ter uma inter-relação íntima para o autor. Nesse sentido, os aspectos fundamentais das relações econômicas internacionais apenas se modificariam mediante a distribuição mais equitativa dos ?frutos do progresso técnico entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos? (FURTADO, 1970, p. 266), de modo que ?a conformação social dos países que qualificamos de subdesenvolvidos resultaria da forma particular que neles assumiu a difusão do progresso tecnológico que moldou a civilização contemporânea? (FURTADO, 2007, p. 58).

A Revolução Industrial até a primeira metade do século XIX era um fenômeno essencialmente inglês. Dessa forma, a Grã-Bretanha concentrava para si a produção de uma diversidade de produtos manufaturados, enquanto importava uma série de matérias-primas e bens cuja produção exigisse uma ampla quantidade de recursos naturais e mão-de-obra: ?a Inglaterra especializava-se na produção manufatureira, na qual concentrava o rápido avanço tecnológico da época? (FURTADO, 1973, p. 59). Importante para tal fato foi não somente o avanço tecnológico da produção, mas também nos transportes (FURTADO, 1970, p. 56). Ao lado das inovações tecnológicas, a expansão do mercado (que cresce com a expansão dos salários) também foi de suma importância para o dinamismo da economia capitalista (FURTADO, 2007).

À medida que as inovações técnicas penetraram nas sociedades diferentemente estruturadas, formam-se as sociedades modernas que se aproximam às que temos no presente. Alguns pontos nisso são importantes: o primeiro dá-se acerca do papel da classe capitalista nas sociedades pertencentes aos países do ?centro? do sistema, que tem um papel fundamental para com o desenvolvimento ao valer-se do avanço das técnicas produtivas para poupar mão-de-obra e continuar a produzir, aumentando o produto global da economia em que está inserido (FURTADO, 1968, p. 7). Esquematicamente, tem-se


Figura 1
Esquema do perfil clássico do desenvolvimento no centro
FURTADO, 2013a.

Já na periferia, ocorre algo muito distinto, pois nela a estratificação social leva a instabilidades e agravamento dos antagonismos presentes (FURTADO, 1968, p. 13). Nestas regiões, a penetração de inovações tecnológicas oriundas do centro do sistema e visando a resolver problemas das sociedades estabelecidas nesse centro leva a agravamento dos problemas da periferia. O caso clássico é o seguinte: os avanços tecnológicos do centro visam a poupar mão-de-obra, fator este que é abundante na periferia. Ao introduzirem-se tecnologias poupadoras de mão-de-obra nos setores avançados da economia periférica, a mão-de-obra tende a migrar para os setores mais atrasados, de modo que os salários tendem a ser achatados, devido à produtividade baixa encontrada nos setores atrasados. Uma das características do subdesenvolvimento é justamente essa heterogeneidade tecnológica entre setores produtivos de uma mesma economia (FURTADO, 2009). Além disso, a periferia desconhece um processo acumulativo robusto como o dos casos das economias industriais avançadas: nas sociedades periféricas, o excedente criado pela produção não é revertido maior capacidade produtiva, mas é drenado para as regiões centrais, através da adoção de padrões de consumo destoantes da realidade produtiva periférica (voltaremos adiante a tal assunto), de onde se compreende que ?a forma de utilização do excedente de produção e a posição social do grupo que dele se apropria constituem elementos básicos do processo social que engendra o desenvolvimento? (FURTADO, 2000a, p. 158).

Em termos mais sumários, o padrão acumulativo exibido por algumas sociedades europeias pode dar ensejo à revolução tecnológica (até certo momento, exclusivamente inglês, e, posteriormente, espraiado para outras ? poucas ? áreas do mundo), caracterizado de forma icônica pela Revolução Industrial. Nesse momento, a penetração de tecnologias poupadoras de mão-de-obra no processo produtivo e a possibilidade de se colocar no mercado novos produtos, além de produtos antigos agora fabricados outra forma, estruturou o comércio mundial de uma forma que Furtado, seguindo Prebisch, pode chamar de ?centro? e ?periferia?. É sobre isso que trataremos na seção seguinte.

3 O CENTRO E A PERIFERIA

A constatação feita por Raúl Prebisch, em 1949, em seu mais tarde conhecido como ?manifesto latino-americano? é de que os frutos do progresso técnico não se espalham do centro para os países da periferia na maneira como as teorias clássicas do comércio internacional propunham. Na verdade, há uma grande distinção entre o que se pode chamar de centro e o que se pode chamar de periferia, distinção esta que perpassa o desenvolvimento na produtividade, a discrepância nas forças de capitalização e nos níveis de vida em cada uma das regiões caracterizadas. O progresso técnico tende a concentrar-se nas regiões centrais do globo, as áreas já maciçamente industrializadas, situadas sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Mais que isso, ?ao passo que os centros retiveram integralmente o fruto do progresso técnico de sua indústria, os países da periferia traspassaram-lhes uma parte do fruto de seu próprio progresso técnico?, através do processo de deterioração dos termos de intercâmbio (PREBISCH, 1949, p. 56). Daí o diagnóstico de Prebisch, do qual compartilharia também Furtado, acerca da necessidade de industrialização dos países da periferia.

Furtado está de acordo com tal leitura e dela se vale para elaborar suas análises. Helio JAGUARIBE (2008, p. 868) compreende que a utilização de Furtado de tal díade é muito mais ampla: ?tornaram-se cêntricos aqueles países (...) que se revelaram capazes de proceder a acumulação do excedente sob forma de capital e aplicaram este num continuado esforço de incremento da produtividade?. É recorrente no pensamento do autor paraibano que, deixado ao gosto do livre mercado, o subdesenvolvimento não seria uma fase necessária pela qual passa a periferia para se atingir o desenvolvimento, mas consistiria ele mesmo num estado do qual não se escapa. Para ele, além da deterioração dos termos de intercâmbio, a estrutura produtiva dual (ou heterogênea) caracterizada por setores capitalistas coexistentes com setores produtivos não-capitalistas (sendo ambos os setores interdependentes) constitui um bloqueio estrutural ao desenvolvimento dos países situados na periferia do sistema:

a heterogeneidade da técnica se configura mais nitidamente na fase de expansão do setor manufatureiro ligado ao mercado interno. Devendo substituir os produtos importados, o produtor interno é naturalmente levado a copiar as indústrias com as quais pretende concorrer. Os equipamentos que adquire foram desenhados em função do estágio de desenvolvimento das economias mais avançadas: visam a permitir uma grande poupança de mão-de-obra. Dessa forma, reproduz-se agravado, no setor industrial, o quadro que diagnosticamos no setor exportador: todo esforço visando a elevar a produtividade tende a entorpecer a absorção do excedente estrutural de mão-de-obra. Como o setor industrial cresce em termos relativos e nele a absorção de mão-de-obra por unidade de produto final é relativamente pequena, acentua-se a referida tendência a uma lenta modificação na estrutura ocupacional (FURTADO, 2000, pp. 207-8).

Essa transplantação de padrões produtivos, e também padrões de consumo, aumentam a probabilidade de uma heterogeneidade estrutural no subsistema periférico, de modo que ao ser o excedente de produção revertido para a produção de bens de consumo voltados para uma minoria da população de dito subsistema, impede-se que se invista na inovação da produção de seguimentos que produzem para uma ampla parte da população (FURTADO, 2000a, p. 258). Essa atenção prestada por Furtado aos padrões de consumo que perpetuam, em algum nível, o subdesenvolvimento, deve também ser analisado como um dos pontos de originalidade de seu trabalho (RICUPERO, 2005). Assim, não só os ganhos de produtividade da periferia podem ser enviados para os centros (através da deterioração dos termos de troca, Cf. BIELSCHOWSKY, 2000), como também podem ser investidos em padrões de consumo estranhos à realidade periférica (FURTADO, 2013b).

RICUPERO (2005) aponta que a particularidade da contribuição de Furtado para a díade centro-periferia está na historicização que ofereceu, não só a esta díade, mas à teoria estruturalista cepalina. Para Furtado, forma-se o sistema econômico mundial a partir de três elementos. O primeiro é um núcleo altamente capitalizado e industrializado, que financia também as exportações de bens de capital e controla em grande medida os meios de transporte, além de ter alta demanda de produtos primários. O segundo elemento é a formação de uma estrutura de divisão internacional do trabalho sob a tutela do núcleo do sistema. Por fim, o último elemento diz respeito à criação de uma rede de transmissão do progresso técnico, encorajada pelo núcleo que dá gênese ao sistema, visando sustentar e consolidar a divisão internacional do trabalho por ele proposto, através da facilitação da exportação de capitais (FURTADO, 1970, pp. 60-61). No ordenamento do comércio internacional do século XIX, o núcleo a que se refere Furtado é claramente a Grã-Bretanha, contudo, se nos referirmos ao ?centro? do sistema, a terminologia se amplia e passa a se aplicar a todos os países que tiveram sua industrialização datando da primeira metade do século XIX. A crise de 1929 levaria a consequências muito fortemente sentidas nas regiões periféricas que, por necessidade haviam se inserido muito profundamente no comércio internacional. A mudança do polo hegemônico do comércio mundial da Grã-Bretanha para os Estados Unidos traz aspectos que serão melhor discutidos mais adiante. O que importa neste momento é que há uma relação assimétrica entre os países do centro e os da periferia, e que isso cria uma situação de dependência dos últimos para com os primeiros (FURTADO, 1970).

No momento da reestruturação mundial após a crise de 1929, apenas três alternativas estão postas para a América Latina (que é a região periférica que mais imediatamente nos interessa e de que Furtado mais frequentemente trata): a) a reversão dos fatores de produção antes utilizados para a exportação para os setores produtivos pré-capitalistas; b) a manutenção das atividades exportadoras, mas visando ao mercado interno; e c) a industrialização. Em geral, na América Latina, a industrialização tomou o aspecto de substituição de importações. Mesmo essa substituição de importações, na ausência de um projeto de autonomia nacional, está pautada em padrões de consumo que são impostos de fora para dentro do sistema econômico nacional. Ela não visa à diversificação da pauta exportadora dos países da periferia, mas apenas à satisfação do mercado interno:

muitas das economias que mais avançaram pela via da industrialização substitutiva apresentavam estas duas características aparentemente contraditórias: um muito baixo coeficiente de importação de produtos manufaturados finais, portanto uma aparente autonomia no que respeita ao abastecimento interno de produtos manufaturados, e uma total incapacidade para competir nos mercados internacionais desses produtos. Mais avançavam pelo caminho da diversificação, mais baixa era a produtividade. O fechamento refletia não somente o declínio ou lento crescimento das exportações tradicionais, mas também a incapacidade para criar novas linhas de exportação a partir dos setores produtivos que estavam em expansão (FURTADO, 1981, p. 42).

Além da diminuição das economias periféricas, todo o processo de substituição de importações foi ?estritamente controlado? pelos interesses do centro, sendo que os bens de consumo que anteriormente eram produzidos no exterior, passam a ser produzidos domesticamente (FURTADO, 1970). A estruturação de um centro e uma periferia mundiais, em suma, levou a uma acumulação de capital ainda mais intensificada no centro do sistema (FURTADO, 1990).

O apontamento de Prebisch de uma dicotomia entre centro e periferia, adotada por Furtado e por ele aprofundada em suas características nos leva ao grande momento do pensamento de Celso Furtado que é a teoria do subdesenvolvimento. É importante ter em mente que essa divisão entre centro e periferia com distintos padrões de acumulação que refletirão adiante no desenvolvimento de algumas regiões e no subdesenvolvimento de outras nos leva a pensar o desenvolvimento como um fenômeno de prevalecente desigualdade (CARDOSO, 2009), e não combinado, como aponta RICUPERO (2005). Em suma, no pensamento de Furtado, desenvolvimento e subdesenvolvimento são apenas dois aspectos de um mesmo processo.

4 O SUBDESENOLVIMENTO

Feitas essas primeiras colocações, já temos condições de discutir o fenômeno do subdesenvolvimento. Para tanto, pretendemos responder nesta seção algumas perguntas que vão auxiliar-nos a atingir os objetivos propostos para este trabalho. Essas perguntas são a) o que é o subdesenvolvimento; b) como se pode caracterizá-lo a partir dos estudos de Furtado; c) como ele se relaciona com a dependência e com a modernização; e, for fim, d) como o Estado se relaciona com tal fenômeno.

Começando pela última pergunta colocada, podemos identificar como uma parte essencial do Estado as políticas econômicas nacionais, que têm por função buscar o bem estar coletivo. O Estado é importante porque o estudo do desenvolvimento econômico se baseia nele, e a percepção do autor é a de que nas sociedades modernas é o Estado a forma de organização sócio-política de maior importância (FURTADO, 2000a, p. 115) Nesse sentido, portanto, as políticas tomadas pelo Estado no sistema econômico sobre o qual tem soberania visam à prevalência de interesses nacionais sobre a lógica de mercado, ou, nas palavras do nosso autor, ?um sistema econômico nacional não é outra coisa senão a prevalência de critérios políticos sobre a lógica dos mercados na busca do bem-estar coletivo? (FURTADO, 2000b, p. 8). Parece tratar-se, nesse momento, de um princípio normativo que parece presente em toda constatação das análises de Furtado, e para a qual a função do Estado, para superar o subdesenvolvimento, deve pender, já que, como se disse anteriormente, deixada uma economia periférica ao sabor do mercado, o subdesenvolvimento dela característico tende a agravar-se e perpetuar-se, mas não a superar-se como se o subdesenvolvimento fosse uma fase necessária do desenvolvimento e a ele anterior.

No quadro mais amplo da economia mundial, o subdesenvolvimento é um dos aspectos da revolução industrial (FURTADO, 1968), daí a proposta de Furtado de se compreender o que é característico do subdesenvolvimento em se o confrontando com o desenvolvimento. Dessa forma, Furtado concebe o subdesenvolvimento como uma ?criação do desenvolvimento?, resultante de uma determinada inserção na divisão internacional do trabalho, como exportador de bens de ampla necessidade de mão-de-obra, e importador de bens de amplo emprego de capital (FURTADO, 1968). Some-se a isso, sua estrutura produtiva dual, e sua dependência quanto às formas de consumo demandadas por um ?enclave social? periférico, de onde resulta o caráter cultural do fenômeno em questão.

A dependência é um fenômeno mais amplo que o subdesenvolvimento, de modo que podemos falar separadamente de dependência e subdesenvolvimento, embora o subdesenvolvimento necessariamente se dê numa situação de dependência (FURTADO, 2013b). O caso da substituição de importações nos países periféricos, sem um projeto de industrialização mais consistente que vise à diversificação da pauta de exportações é um caso de dependência: a dependência está ligada ao acompanhamento dos padrões de consumo dos países do centro, e o excedente de que desfruta dos ?enclaves sociais? privilegiados da periferia serão gastos na manutenção deste padrão (FURTADO, 2013b). Somando-se, portanto, a existência de um enclave social a uma situação de dependência, temos que a concentração de renda tende a aumentar: ?se se tem em conta que a situação de dependência está sendo permanentemente reforçada (...), torna-se evidente que o avanço do processo de industrialização depende (...) de uma crescente concentração de renda? (FURTADO, 2013b, pp. 188-9).

O subdesenvolvimento é um fenômeno originado a partir de uma estrutura econômica dualista, isto é, uma estrutura que se divide entre formas de produção que visam à maximização do lucro e formas de consumo modernas, e formas coexistentes e interdependentes de produção pré-capitalista. Essa dualidade decorre do contato da economia industrial europeia com regiões já povoadas do globo, possuindo estas últimas uma natureza não-capitalista[2], e é esta sua característica mais importante (ou seja, a que o caracteriza, cf. FURTADO, 2001, p. 173).

Desse modo, embora a estrutura produtiva nas regiões periféricas apresente uma deficiência marcante na escassez de capital, e abundância de mão-de-obra (existentes, principalmente, em setores produtivos de subsistência), de onde se conclua que a combinação desses fatores só se dá em determinadas quantidades (FURTADO, 2009, p. 85), esta caracterização não é suficiente para compreender o fenômeno do subdesenvolvimento, ainda que seja verdadeira, já que ?o subdesenvolvimento é por si mesmo um desequilíbrio no nível dos fatores? (FURTADO, 2009, p. 174). Desconhece a periferia, portando, um padrão acumulativo como o do centro, acumulação esta em que o excedente produzido retorna ao processo produtivo sob forma de investimento (FURTADO, 2009, p. 107; e também como evidenciado na figura 1). Em alguns casos periféricos, a minoria que se apropria do excedente despende-o em padrões de consumo estranhos à realidade periférica, de onde se extrai o caráter cultural que existe no processo de desenvolvimento, de modo que uma das caracterizações mais abrangentes que podemos dar ao subdesenvolvimento é que ele se trata de uma ?disparidade entre o dinamismo da demanda e o atraso na acumulação produtiva. Este último tem origem na forma de inserção na divisão internacional do trabalho e aquele na penetração dos padrões de consumo do centro?. (FURTADO, 1990, pp. 182-3, grifos nossos)

O contato dos modos de produção centrais com os periféricos, de onde deriva o dualismo estrutural dos países periféricos, tem origem na necessidade de expansão intrínseca à industrialização europeia (?do centro?): segundo FURTADO (2000a, p. 195), ?o advento de um núcleo industrial, na Europa do século XVIII, significou uma modificação qualitativa na economia mundial da época e passou a condicionar o comportamento das economias do mundo todo?. É isso o que nos permite pensar, e o que torna mais claro o que já foi explorado anteriormente, de que o subdesenvolvimento é um processo autônomo (FURTADO, 2000a): é assim que se deve entender o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como processos desiguais (RICUPERO, 2005) e articulados [3] (mas não combinados). Embora a heterogeneidade na estrutura subdesenvolvida seja um processo de caráter econômico, a inovação tecnológica, visando a copiar o centro, é o que aprofunda tal processo, concluindo furtado que, assim, ele tende a se reproduzir (FURTADO, 2000a, p. 205): a lógica sobre a qual a estrutura internacional se baseia é contrária às economias dependentes (FURTADO, 1992, p. 60).

Por tudo o que já foi explorado aqui, depreende-se que a compreensão do fenômeno do subdesenvolvimento é uma de caráter qualitativo (FURTADO, 2007). A simples modernização da periferia, ou seja, uma adoção de padrões de consumo e produção de situações adequadas às circunstâncias dos países do centro[4], não teriam os resultados pretendidos ? pelo contrário, em alguns aspectos agrava o subdesenvolvimento: ?os países periféricos foram rapidamente transformados em importadores de novos bens de consumo, fruto do processo de acumulação e do progresso técnico que tinha lugar no centro do sistema? (FURTADO, 2013b, p. 178). Os fatores culturais, como a adoção de determinados padrões de consumo e produção, sem ter em conta as particularidades do lugar onde se situa, é, para Furtado, uma razão da permanência do subdesenvolvimento em algumas sociedades (FURTADO, 2007, p. 60). Para este ponto, parece apontar também a argumentação de RODRÍGUEZ (2011), segundo quem o desenvolvimento (econômico) tem muito a ver com o desenvolvimento de uma identidade cultural, e no subdesenvolvimento existem travas a essa formação. Somos levados a concluir que essa identidade cultural passa pela necessidade de produção e adoção de um padrão de consumo a ela relacionados:

a existência de uma classe dirigente com padrões de consumo similares aos de países onde o nível de acumulação de capital era muito mais alto e impregnado de uma cultura cujo elemento motor é o progresso técnico transformou-se, assim, em fator básico na evolução dos países periféricos (FURTADO, 2013b, p. 179).

A dependência cultural, nos termos tratados, está na base dos processos de reprodução do subdesenvolvimento, tanto a partir do processo de produção, quanto no de circulação, que devem ser compreendidos simultaneamente para FURTADO (2013b).

Dentre os aspectos que exibe o subdesenvolvimento, o caso mais complexo, e que nos permite relacioná-lo claramente com a dependência, é exemplificado por Furtado por uma economia em três setores, na qual há um de subsistência; um outro, focado na exportação; e, por último, um setor voltado para o mercado interno, com diversificada produção e capacidade para a produção de parte dos bens de que aquela economia necessita:

o núcleo industrial ligado ao mercado interno se expande por meio de um processo de substituição de manufaturas antes importadas, vale dizer, em condições de permanente concorrência com produtores forâneos. Daí resulta que a maior preocupação do industrial local é a de apresentar um artigo similar ao importado e adotar métodos de produção que o habilitem a competir com o mercado de artigos estrangeiros. Assim sendo, os processos produtivos que se afiguram mais vantajosos são aqueles que permitem reproduzir com exatidão os artigos importados, e não os que permitam uma transformação mais rápida da estrutura econômica, pela absorção do setor de subsistência. Nessas circunstâncias, o crescimento do setor industrial ligado ao mercado interno e mesmo o aumento de sua participação no produto, bem como a elevação da renda per capita do conjunto da população, não são suficientes para acarretar modificações significativas da estrutura ocupacional do país. O contingente da população afetada pelo desenvolvimento mantém-se reduzido, declinando muito devagar a importância relativa do setor cuja principal atividade é a produção para subsistência. Países cuja produção industrial já alcançou elevado grau de diversificação e apresenta uma participação no produto relativamente elevada, continuam com uma estrutura ocupacional tradicional. Dessa forma, as economias subdesenvolvidas podem conhecer fases prolongadas de crescimento de seu produto global e per capita sem reduzir o grau de dependência externa e heterogeneidade estrutural interna, que são suas características essenciais (FURTADO, 2000a, p. 203).

No excerto anterior, temos claramente que, junto à interdependência existente entre o setor capitalista e o não-capitalista, característica do subdesenvolvimento, há uma dependência do grupo industrial das tecnologias que são geradas no centro e que, trazidas para a periferia, não fazem senão agravar o subdesenvolvimento, ao poupar fatores que na periferia são abundantes, como a mão-de-obra. Entretanto, observar essa dependência apenas do ponto de vista desse ?desequilíbrio de fatores?, é insuficiente. Existe na periferia, um grupo minoritário que é ligado aos padrões de consumo do centro, padrões estes que são estranhos à periferia: esse grupo, existente como um ?enclave social?, é ?culturalmente integrado nos subsistemas dominantes? (FURTADO, 2000a, p. 259). Assim, essa minoria passa a consumir produtos que, anteriormente importados, são agora produzidos nas periferias e que não apontam para uma autonomia da indústria local. A descentralização dessa produção ?significa localizar, parcial ou totalmente, na ?periferia?, a produção física de artigos que continuam a ser criados nos centros dominantes? (FURTADO, 2000a, p. 159). É interessante notar aqui a ideia de dominação (política) para aspectos que usualmente são vistos simplesmente como econômicos.

Exposto, portanto, ainda que de forma mais sumária, o que se pode entender por subdesenvolvimento para Furtado, cabe-nos perguntar, ainda que a resposta seja demasiado breve, a que está relacionada a ideia de ?desenvolvimento? para o autor: para Furtado, o verdadeiro desenvolvimento relaciona-se com a ideia de ?homogeneização social? (FURTADO, 2013a), ou seja, não uma igualização radical dos padrões de vida, mas sim uma maneira dos indivíduos em uma sociedade conseguirem satisfazer ?de forma apropriada as necessidades de alimentação, vestuário, moradia, acesso à educação e ao lazer e a um mínimo de bens culturais? (FURTADO, 2013a, p. 253). Nesse sentido, temos que o horizonte político de Furtado não é um rompimento radical com o capitalismo, mas um modelo baseado na socialdemocracia europeia[5]. Sua construção teórica torna-se coerente com este horizonte político, pois a dualidade produtiva estrutural que, entre outras coisas, tem como consequência uma alta taxa de concentração de renda, em que os salários são nivelados pelos setores de menor produtividade do sistema econômico, faz com que apenas uma parcela da população tenha acesso satisfatório aos serviços citados acima ? o ?enclave social?. Ora, não fica difícil compreender, portanto, o papel do Estado nas economias periféricas, não só ao estabelecer as políticas econômicas, mas também no direcionamento do excedente produtivo sob forma de investimentos na própria diversificação da economia nacional, visando à formação de uma identidade cultural nacional à qual correspondam os padrões de consumo. Nas próximas seções, em vez de direcionarmos este aparato analítico para aspectos internos das economias periféricas, tentaremos compreender como os aspectos externos ? relacionados às relações internacionais ? agem com respeito ao subdesenvolvimento.

5 A CONFORMAÇÃO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO PÓS-GUERRAS

Para dar prosseguimento ao objetivo principal deste trabalho, veremos como se conformam as relações internacionais no momento em que as analisa Celso Furtado, isto é, entre a segunda metade da década de 1960 e a primeira metade da de 1970, quando escreve os textos que estão presentes em ?Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina? e ?A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina?, livros que abordam mais incisivamente o objeto que queremos descrever neste trabalho. Contudo, valemo-nos de outros textos para compreender o que se passa antes e depois na conformação do cenário internacional de que nos dá notícia Furtado.

Num primeiro momento, cabe-nos uma colocação de caráter mais abrangente relacionando o que já foi tratado até aqui com o que será explorado mais adiante. A irradiação irregular do progresso técnico do centro para a periferia engendrou uma divisão internacional do trabalho separada entre os produtores de matérias-primas e produtos primários, em geral com baixa produtividade, e os produtores de manufaturas, com produtos fabricados com amplo investimento de capital, estabelecendo-se um sistema de relações assimétricas. Nesse sentido, diferenças sensíveis foram se estabelecendo na economia mundial, passando ela a dividir-se em ?três subconjuntos: um setor industrializado, um setor de estrutura dualista influenciado pelo primeiro, e um remanescente de economias pré-industriais? (FURTADO, 2000a, p. 192). Localizar onde se encontram os países que se pretende analisar dentro destes subconjuntos parece ser proveitoso para estabelecerem-se hipóteses de como se dão as relações entre eles. No caso, trataremos de países do centro, ou seja, de industrialização avançada (e muito desenvolvidos em termos de homogeneidade social e expansão dos mercados internos), e países latino-americanos, em geral de estrutura dualista (quando muito) e subdesenvolvidos (o que, por si só, já aponta para um desequilíbrio de fatores de produção). Nessa relação está intrínseco um fenômeno de dominação de natureza cultural e política, pois o subdesenvolvimento apresenta-se como tal, e seria um erro analisá-lo apartado de um quadro mais amplo de divisão internacional do trabalho (FURTADO, 2000a, p. 206-7).

A ordem econômica mundial prevalecente no século XIX é deixada para trás com os dois conflitos mundiais, estabelecendo-se uma nova estrutura do poder mundial e, por isso, das próprias relações econômicas que se estabelecem a partir de 1945. Nessa nova estrutura do poder mundial, tornam-se partícipes do sistema de poder do momento dois polos que antes não o eram: Estados Unidos e União Soviética (FURTADO, 1973). A alçada dos Estados Unidos a um dos polos do poder mundial deve ser levada em consideração junto à bipolarização do poder mundial e junto à maior integração dos mercados das economias capitalistas mundiais, resultado da confrontação ideológica existente entre os dois polos de poder (FURTADO, 2013c, p. 428). Essa polarização, entretanto, não é fortuita:

a Segunda Guerra Mundial havia provocado o surgimento de uma potência em condições de pretender exercer hegemonia no continente eurasiático, isto é, engendrara aquilo contra o que a Inglaterra e os Estados Unidos haviam lutado nas duas guerras mundiais (FURTADO, 1973, p. 25).

Dessa maneira, as duas potências alçadas ao poder ao fim da Segunda Guerra buscaram estruturar sua ação internacional em pilares distintos, estando ambas em condições de um ?equilíbrio estratégico termonuclear? (FURTADO, 1968, p. 46), de modo que a hegemonia de cada uma deva ser interpretada em termos dos seus próprios interesses específicos. A União Soviética, havendo se formado historicamente sob condições de instabilidade, buscava garantir sua segurança exterior por meio de uma esfera de influência. Já no lado dos Estados Unidos, essas esferas de influência se davam no sentido de organizar uma sociedade internacional aberta, da qual exerceriam a liderança devido a seu enorme poder econômico (FURTADO, 1973). Essa sociedade internacional só faz sentido para atingir os objetivos estadunidenses se for capitalista, ou seja, se puder fazer valer o seu grande poderio econômico. É aqui que a influência econômica dos Estados Unidos ganha colorações de segurança, sobre o que falaremos adiante. O que importa reter no momento é a estruturação do mundo ?nessa estranha combinação de métodos diplomáticos e ação militar indireta que recebia a denominação de ?guerra fria?? (FURTADO, 1973, p. 26). As esferas de influência, cabe ressaltar, não têm maior significado militar para as potências em confronto ideológico, já que se encontram sob equilíbrio estratégico, acima mencionado. Entretanto, para os países subdesenvolvidos, elas constituem um entrave para seu desenvolvimento, ao limitar a ação de seus centros de decisão, de modo que torna-se restrita sua ação para adaptar suas estruturas a políticas de desenvolvimento necessárias. Trata-se de um caso de dominação econômica (FURTADO, 1973, p. 85). Como é, então, que a segurança dos Estados Unidos como um dos polos do poder mundial se relaciona com a América Latina e como é que o subdesenvolvimento latino americano se relaciona com todo isso é aquilo sobre o que trataremos a seguir.

6 A SEGURANÇA DOS ESTADOS UNIDOS E O SUBDESENVOLVIMENTO DA AMÉRICA LATINA

O interesse dos Estados Unidos em sua ?esfera de influência? latino-americana tem a ver com sua estratégia de segurança e manutenção do status quo, característicos do período em que viviam. Entre os países latino-americanos, a necessidade mais urgente se direcionava aos imperativos do desenvolvimento econômico, de modo que havia um choque entre os interesses em questão. Nesse sentido, as doutrinas que dão origem aos programas de auxílio dos Estados Unidos às regiões subdesenvolvidas de sua esfera de influência estão imbuídas de uma lógica de que seus objetivos seriam mais facilmente conquistados em se auxiliando os países subdesenvolvidos a desenvolverem-se. Está neste âmbito a ?Aliança para o progresso?, de 1961. Some-se a esse caráter de auxílio econômico a queda na discrepância entre poderio político e militar entre os polos do sistema mundial de poder, devido ao avanço da técnica na União Soviética, que, por exemplo, anulou o monopólio do poder atômico estadunidense (FURTADO, 1973, p. 66). Para Furtado, o caráter das relações entre as sociedades desenvolvidas e as subdesenvolvidas ?envolvem formas de dependência que tendem a autoperpetuar-se? (FURTADO, 1973, p. 8). O caráter periférico que a região assumiu na difusão do progresso técnico levou à conformação de uma sociedade altamente dependente, em que ?a regra tende a ser o monopólio ou o oligopólio e uma progressiva concentração de renda?, de modo que o ensaio de industrialização que a região conheceu, a substituição de importações, tendia a empregar uma tecnologia poupadora de mão de obras e condicionava uma industrialização exigente no que diz respeito ao mercado interno: assim, a experiência latino-americana tendeu a perder impulso e ?eventualmente provoca a estagnação? (FURTADO, 1968, p. 37). Além disso, quando o processo foi levado a cabo por grupos estrangeiros que já atuavam nos mercados latino-americanos, a questão tomou corpo como ?menos um fenômeno de cooperação financeira que de controle das atividades produtivas por parte de grupos que já vinham abastecendo o mercado por meio de exportações? (FURTADO, 1970, p. 251).

O que isso tem a ver com a estratégia de segurança norte-americana é evidenciado por algumas colocações do autor facilmente resumidas: o tipo de desenvolvimento embutido na proposta de assistência norte-americana aos países subdesenvolvidos de sua esfera de influência, que configura parte de sua doutrina de segurança, deve ser levada a cabo por seus conglomerados empresariais, os quais, uma vez instalados na periferia do sistema mundial, tendem a aprofundar ainda mais o subdesenvolvimento dessas áreas. A projeção dessas empresas estadunidenses não constituem uma mudança na estrutura econômica dos Estados Unidos, mas sim numa projeção que acarretaria a estas empresas uma rede de decisões multinacionais, cuja coerência, entretanto, estaria imbricada com as políticas econômicas levadas a cabo pelos Estados Unidos, cuja economia ?ao conservar uma margem grande de autonomia para com o resto do mundo, estaria em condições privilegiadas para exercer o papel de centro estabilizador e orientador da economia mundial? (FURTADO, 1973, p. 60). Essa nova estruturação do mercado mundial, através de grandes empresas levaria a um processo de acumulação muito alto (FURTADO, 1981).

As empresas estadunidenses atuam num campo muito amplo, o que parece ser ?uma característica predominante da presente evolução industrial da economia norte-americana? (FURTADO, 1973, p. 48). Além disso, apresentam um caráter de conglomerado, possuindo amplo acesso a mercados distintos e amplo capital a sua disposição:

o conglomerado é essencialmente um centro de decisões de base gerencial-financeira. Se o consumo da coletividade cresce principalmente pela diversificação, e o progresso tecnológico exige que os processos produtivos se inovem com crescente rapidez, é natural que a empresa tenda a diversificar-se, se pretende manter ou aumentar sua participação no sistema produtivo. Desta forma, a empresa especializada e o mercado de capitais tendem a ocupar posições secundárias nas economias capitalistas, ao mesmo tempo que se ampliam as possibilidades de concentração do poder econômico (FURTADO, 1973, p. 52).

Assim, são pouco responsivas às pressões ?exercidas num mercado em que ela tem aplicada uma pequena fração dos seus recursos? (FURTADO, 1973, p. 50), além de poder controlar o comportamento do mercado em questão ao sempre ter a capacidade de ameaçar crivelmente que aumentará suas atividades nele.

Num viés mais econômico, Furtado argumenta que as grandes empresas norte-americanas não são adequadas para resolver os problemas do subdesenvolvimento, uma vez que as dimensões e a pulverização dos focos dos problemas identificados em cada uma das situações encontram-se em grande dissonância: ao penetrarem zonas subdesenvolvidas, as grandes empresas que apresentam tecnologia avançada e alta capitalização tendem ?a provocar desequilíbrios de difícil correção, tais como maiores disparidades de níveis de vida entre grupos de população e alta acumulação de desemprego aberto e disfarçado? (FURTADO, 1973, p. 41), tendo como resultado final o aumento das tensões sociais nas áreas em questão.

Onde quer que os conglomerados estadunidenses hajam penetrado na América Latina, independentemente do grau de industrialização alcançado, impediu-se a formação de um grupo empresarial com nítida visão nacional (FURTADO, 1973): ?a ação empresarial nacional ficou restrita a setores secundários ou decadentes, ao trabalho pioneiro, isto é, à abertura de novas frentes a serem mais adiante ocupadas pelas grandes organizações estrangeiras?.

O Estado é apontado, então, por Furtado, como o grande porta-voz dos interesses da coletividade nacional. Parece estar sob seu poder o direcionamento que se pode dar no sentido do país encontrar as vias do desenvolvimento. Entretanto, sob a conjuntura esboçada de auxílio estadunidense, parece ficar demasiadamente restrita sua ação. Nesse sentido, para Furtado (1973), enfraquecer o Estado, cujo mercado é amplamente divido por conglomerados estrangeiros, não se trata de fortalecer a iniciativa privada (até porque, como dito anteriormente, a própria ação da classe empresarial nacional se encontra entorpecida ou restrita a algumas poucas funções), mas sim renunciar a um sistema de produção ?articulado em função dos interesses da coletividade nacional? (FURTADO, 1973, p. 55). Assim, a presença de conglomerados fazem parte de um sistema de decisões que pouco tem a ver com as estratégias nacionais de desenvolvimento dos países em que se instalam tais empresas, cujo sistema de decisões foi espraiado geograficamente (FURTADO, 1973, p. 82). Por isso se conclui que a estratégia de ajuda dos Estados Unidos à América Latina, ao criar condições privilegiadas à atuação internacional de suas empresas e controlar a subversão nesses países, acabou agravando os aspectos do subdesenvolvimento, pois

?contribui para preservar as mais retrógradas formas de organização social e tende a esvaziar os estados nacionais como centros de decisão e como instrumento de mobilização das coletividades para as tarefas do desenvolvimento? (FURTADO, 1973, p. 86).

Por apresentarem um caráter multinacional, a estruturação dos conglomerados tem um caráter amplamente favoráveis ao livre mercado (FURTADO, 1981), e, nesse sentido, contribuem ainda mais marcadamente para a perpetuação do subdesenvolvimento, tendo em vista as constatações anteriores feitas pelo autor (e por Prebisch) de que deixadas às regras do mercado, as economias subdesenvolvidas tendem a assim permanecerem.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Furtado é um autor altamente versátil, cujo pensamento lança luz a diversos aspectos da realidade social que analisa. Nesse sentido, nunca constituiu objetivo deste trabalho apresentar Furtado como um pensador das Relações Internacionais, mas como alguém que as pensou de forma altamente original dentro de seu projeto de análise da realidade, assim como alguém que pensou a economia, a política e a sociologia daquela realidade que constituía seu objeto mais imediato de Estudo. Nesse sentido, ao recusar conformar-se a um ?tubo de ensaio? das diversas ciências humanas, Furtado extrapolou os limites que esses tubos imporiam, dando origem a um sistema de pensamento, e uma teoria do subdesenvolvimento, altamente originais e criativos.

Essa teoria do subdesenvolvimento, como estruturada, nos permite levar em conta, como tentamos argumentar no texto, como as relações internacionais nos auxiliam a pensar a questão do subdesenvolvimento da periferia do sistema mundial, ao se examinarem algumas dessas relações como fatores externos de perpetuação do subdesenvolvimento, e o exemplo claro das relações entre os Estados Unidos e a América Latina no período entre os anos 1960-70 parece ser seminal em tal questão.

A América Latina, em perspectiva histórica, desde sua colonização e seu contato com os centros do sistema mundial, especializar-se-ia em determinadas produções, e o excedente desses poucos itens de produção seriam apropriados por um grupo que teria seu consumo culturalmente marcado por outras regiões do globo: as regiões centrais. Ao desenvolverem-se novas formas de produção, altamente poupadoras de mão-de-obra, e, ao mesmo tempo, novos produtos manufaturados, a situação das periferias tenderia a se agravar, em termos de subdesenvolvimento. Daí a urgência de uma identidade cultural que auxiliasse no rompimento das amarras do subdesenvolvimento.

No cenário proposto da Guerra Fria, a questão do subdesenvolvimento se faz sentir mais claramente não só nas estruturas domésticas e padrões de heterogeneidade social característicos desse fenômeno, mas nas próprias relações travadas entre os Estados latino-americanos e as regiões centrais do sistema mundial. Sendo um dos polos os Estados Unidos, que desde antes de tornar-se um polo de poder já travara diversas relações com seus vizinhos do sul, os imperativos de segurança desse país, sobre um quadro de confronto ideológico, se tornariam cruciais. É aí que se tem um maior interesse para a questão do subdesenvolvimento da América Latina.

Ao propor doutrinas de segurança que levassem em conta o desenvolvimento da América Latina, os Estados Unidos postulavam um tipo determinado de desenvolvimento que, no pensamento de Furtado, pouco correspondia às reais necessidades dos países da região, e acabariam por ter efeito distinto do desejado, por se tratarem os entes privados norte-americanos de grandes conglomerados, com potencial para o desequilíbrio doméstico dos países da região, distanciando-os do almejado desenvolvimento, somando-se a isso o credo nas instituições e regulações do livre-mercado, que tendem a perpetuar o subdesenvolvimento.

O pensamento de Furtado no que tange às relações internacionais, é altamente criativo e lança uma luz pouco convencional sobre determinadas questões, como é o caso das relações entre segurança, subdesenvolvimento, livre-comércio e cooperação internacional. Apesar de não se debruçar sobre uma teoria de relações internacionais, os elementos que o autor paraibano nos fornece são de grande importância e relativo alcance. A percepção das relações internacionais surge da articulação entre as diversas partes que constituem o globo, e essa percepção está muito bem clara no pensamento de Furtado, desde sua compreensão do avanço da técnica de forma desigual entre o centro e a periferia, até as maneiras como o subdesenvolvimento pode se agravar pelas relações entre os países.

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Notas

[1] Faculdade de Filosofia e Ciências - Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília).
[2] Textualmente: ?o efeito do impacto da expansão capitalista sobre as estruturas arcaicas variou de região para região, ao sabor de circunstâncias locais, do tipo de penetração capitalista e da intensidade desta. Contudo, a resultante foi quase sempre a criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tendia a comportar-se como um sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura pré-existente. Esse tipo de economia dualista constitui, especificamente, o fenômeno do subdesenvolvimento contemporâneo? (FURTADO, 2001, p. 161).
[3] A este aspecto chamou atenção o professor Francisco L. Corsi.
[4] Textualmente, FURTADO (2013b, p. 182) refere-se ao processo de modernização como um ?esforço que realizam os grupos que se apropriam do excedente para reproduzir formas de consumo, em permanente mutação, dos países cêntricos?. Como consequência, essa modernização serve como principio direcionador da diversificação do consumo e da alocação tecnológica, determinando também o nível dos salários nos setores industriais e de subsistência.
[5] Este também é um dos apontamentos feitos pelo professor Francisco L. Corsi.


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