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A noção de secularismo em Willian Connolly: uma alternativa ao conceito de laicidade para compreensão dos conflitos entre política e religião
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 2, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 2, 2017

Recepção: 07 Setembro 2017

Aprovação: 21 Novembro 2017

Resumo: O secularismo nas ciências sociais é um conceito auxiliar para explicação dos processos de secularização e diferenciação das esferas sociais modernas. O conceito acusa tanto uma ideologia, como uma doutrina ou um conjunto de práticas sociais. Em Connolly, o secularismo é uma categoria que remodela o secular ao romper com a narrativa clássica de separação entre política e religião. Como articular essa tese para compreensão das experiências secularistas praticadas no Brasil? Conjecturamos que o secularismo ultrapasse o plano normativo para ser uma teoria social. Esta noção é relevante pois o conceito de laicidade é normativo. O objetivo do artigo está em explicitar o secularismo em Connolly evitando assim o caráter antirreligioso presente na laicidade. A metodologia proposta é a bibliográfico-descritiva e na conclusão do artigo, infere-se a viabilidade do uso do conceito em substituição à laicidade, contudo, o contexto brasileiro, por não se mostrar como uma democracia plural, a noção de laicidade ainda se torna não perde sua validade explicativa.

Palavras-chave: Willian Connolly, Secularismo, Laicidade, Política, Religião.

Abstract: Secularism in the social sciences is an auxiliary concept to explain the processes of secularization and differentiation of modern social spheres. The concept accuses both an ideology, a doctrine, or a set of social practices. In Connolly, secularism is a category that reshapes the secular by breaking with the classic narrative of separation of politics and religion. How to articulate this thesis to understand the secularist experiences practiced in Brazil? We conjecture that secularism goes beyond the normative plane to be a social theory. This notion is relevant because the concept of secularism is normative. The aim of the article is to make explicit the secularism in Connolly thus avoiding the antireligious character present in secularism. The methodology is bibliographic-descriptive and in conclusion, it is inferred the viability of the use of the concept instead of laity, however, the Brazilian context, because it does not show itself as a plural democracy, the notion of laity still becomes not lost its explanatory validity.

Keywords: Willian Connolly, Secularism, Secularism, Politics, Religion.

1. Introdução

O presente artigo apresenta uma discussão teórico-conceitual e bibliográfica sobre da temática do secularismo. Estabelece como objetivo um diálogo entre a abordagem política-normativa inserida no pensamento do filósofo da política estadunidense Willian Connolly, interseccionando com o conceito de laicidade. A hipótese de trabalho reside no esforço de se pensar o secularismo como alternativa conceitual à noção de laicidade no que tange a ampliação de análises e explicações sobre o fenômeno do religioso no contexto brasileiro, em especial, a esfera política. A redação do texto se organiza em três secções, a saber: i) definições mais amplas sobre o secularismo e suas confluências com o pensamento de Connolly; ii) o desenvolvimento da noção de laicidade e seu cotejamento com o contexto brasileiro; iii) as considerações finais.

2.Notas sobre o secularismo

Antes de qualquer ampliação e problematização sobre o conceito, é importante frisar que dada nossa presumível familiarização com o termo, limitamo-nos às afirmativas ainda que imprecisas, de associar o secularismo à somente: i) a separação entre Igreja e Estado, ii) à formas de se conduzir a religião para a esfera do privado separando-a da razão pública, iii) uma forma de organização político-institucional dos governos sobre as condutas individuais e coletivas e iv) a formação de um corpo ideológico (SCHERER, 2011; 2013). Essas quatro caracterizações, a nosso ver, apresentam-se como limítrofes, no que se refere ao alcance que as discussões sobre o secularismo vêm alcançando na contemporaneidade.

Tratar sobre o secularismo torna-se uma tarefa ainda mais difícil em virtude de sua proximidade com a noção de secularização. Os termos têm significados distintos e propósitos analíticos diferentes. A secularização, é o processo sócio-histórico e cultural de declínio ou afastamento do religioso tanto das práticas da vida cotidiana como do pensamento humano. Característica essa, própria da modernidade ocidental, mas não a ela exclusiva. Situamos o conceito de secularização de corte weberiano como referência fundamental para a compressão do conceito. Para Sell (2007)

O termo passou a estar associado à ideia de declínio da religião, quando, na verdade, no próprio Weber ele aponta para uma ideia bem mais restrita e precisa, qual seja, a separação entre Igreja e Estado, ou seja, religião e política. Estado laico, não mundo sem religião, eis que significa a secularização em Weber, seja bem dito.

Dullo (2012) amplia a discussão. Ancorando-se em Casanova (2011), explicita que a secularização se desdobrou em três frentes analíticas: a secularização propriamente dita, como um processo inacabado da modernidade, o secular como uma categoria epistêmica do moderno, substrato social, realidade natural desprovida de religião e o secularismo ?como uma doutrina política que sustenta o mundo secular e que se opõe à religião, sendo descrita por uns como ideologia e, por outros, como visão de mundo? (DULLO, 2012, p. 383). Nesse aspecto, o secularismo é de cunho ideológico-político.

Castro (2012) compreende o secularismo como aquele que abriga múltiplas e conflitivas interpretações e teorizações sobre o fenômeno da secularização. Por essa razão, ?será o mesmo processo e o mesmo projeto sociopolítico em toda parte ou existirá uma ampla variedade de secularismos?? (DULLO, 2012, p. 384). Além disso, na mesma medida com que se tem uma variedade de espécies de religião, existiria uma variedade de espécies de secularismos como nos casos dos Estados Unidos, China, Turquia, França, índia, Reino Unido e Brasil (DULLO, 2012).

Nessa perspectiva, Jakelic (2010) em um ensaio bibliográfico sobre a temática, circunscreve a amplitude do conceito a partir de duas compreensões distintas. Para a autora,

secularismo pode indicar uma visão de mundo, uma ideologia, uma doutrina política, uma forma de política de governo, um tipo de filosofia moral, ou uma crença de que o método científico seja suficiente para compreensão do mundo em que vivemos (JAKELIC, 2010, p. 49).

Sobre a amplitude do conceito, a autora dá destaque para dois modelos de secularismo: i) aquele aonde a ciência é fundacional e ii) aquele cujo centro é o ordenamento da vida política. No científico, Jakelic (2010) sugere a tipificada separação e confrontos entre religião e ciência. Nesse aspecto, prevalece o modo padrão dos secularistas e antirreligiosos de se servirem da ciência em suas posturas, muitas delas, combativas à religião, como as expressas através do movimento New atheism.

No segundo modelo, ?o secularismo serve como um princípio organizacional de uma comunidade política. Faz referência à separação entre política, instituições estatais e religião? (JAKELIC, 2010, p. 52). Efeito desse modelo, subjaz a ?criação de uma esfera pública aberta a todos os indivíduos como cidadãos iguais, independentemente de suas identidades particulares? (JAKELIC, 2010, p. 52).

Na problematização do conceito, apoiemo-nos no capítulo dois da obra Rethinking Secularism (2011), em que o sociólogo José Casanova explicita a terminologia em contraste com o secular e a secularização. Para Casanova, grosso modo, o secular corresponde à uma categoria epistêmica central para se pensar a modernidade do ponto de vista teólogo-filosófico, político-legal, antropo-cultural em vista de construções, sistematizações e compreensões distinções de um dominio, distinto do religioso (CASANOVA, 2011).

A secularização, por sua vez refere-se à uma abordagem analítico-conceitual dos processos históricos mundiais da modernidade. Para Casanova (2011), faz referência à padrões histórico-empíricos, reais ou hipotéticos de transformação e diferenciação das esferas religiosas e institucionais desde o início da moderndidade até às sociedades contemporâneas. Nesse debate, que incluímos também Wohlrab-Sahr; Burchardt (2012, p. 880), a ?secularização está para processos sociológicos que abordam processos de diferenciação fucional, declínio religioso e privatização da prática religiosa?.

Quanto ao secularismo, na ótica de José Casanova, este se apresenta sob várias formas históricas e em diferentes modelos normativos de separação legal-constitucional entre Estado laico e religião; sem contar os diferentes tipos de diferenciação cognitiva entre ciência, filosofia e teologia; e nos modelos de diferenciação prática entre lei, moralidade, religião, e assim por diante. Em Jakelic (2010, p. 50) ?a história do secularismo no ocidente é uma batalha da razão, do progresso e modernidade contra a religião, conservadorismo e tradição?.

De maneira exemplar, Charles Taylor na obra Secular Age (2007), ao fazer um rastreio do processo de secularização em diferentes etapas do mundo ocidental moderno permite a compreensão das formas distintas da secularização, ou seja, da forma como determinadas sociedades, instituições e organizações sócio-políticas se ajustaram ante ao afastamento do religioso das práticas e condutas individuais e coletivas. A obra de Taylor, alargou a compressão aberta em Weber pois faz um percurso histórico e contextualizado da secularização inserindo a trajetória do ser humano como agência capaz de construir e reconstruir as sociedades. Muito mais que uma compreensão da secularização, sua obra se ocupa da compreensão das condições de crença dos agentes (DULLO, 2012).

Por essa via, o secularismo, ao menos a partir dos autores em tela e em contraste com a secularização, permite uma entrada mais fluida quanto o debate entre a posição da religião na política e consequentemente nos espaços públicos. Portanto, é nesse debate, que se insere os trabalhos de Willian Connolly.

2.1 O secularismo em Willian Connolly

A razão pelo qual se adota as teses sobre o secularismo do cientista e filósofo da política Willian Connolly[2], decorre da possibilidade analítica que vislumbramos no tratamento que faz ao conceito em questão. Ao longo de cinco décadas aposta em novas modelagens para ação política dos atores sociais na esfera pública a partir da vivência do secularismo em sociedades profundamente plurais (CHAMBERS; CARVER, 2008).

Sua trajetória teórica-intelectual ampara-se nos filósofos Baruch Spinoza, Henri Bergson e Friedrich Nietzsche e nos últimos anos, após o seu rompimento epistemológico com os intelectualistas, os kantianos e os neo-kantianos [James, Habermas, Rawls] aproxima-se do neo-estruturalismo ancorando-se em Talal Assad, Michel Foucault e Gilles Deleuze (CONNOLLY, 2011; WENMAN, 2008).

Declarando-se ateu, Connolly, (CONNOLLY, 1999) abre espaço para categorias de esferas metafísicas na composição de suas teses. Estas, se encaixam naquilo que se intitula como um naturalismo imanente ou um pluralismo sem transcendência (WENMAN, 2008). Isto é, da regularidade do próprio tecido da vida social há possibilidade de emergir espontaneamente ordenamentos necessários para a vida política.

Sob a égide teórica do pluralismo multidimensional profundo ? conceito aplicável às sociedade democráticas modernas -, os integrantes de várias minorias, trazem suas crenças pessoais e questões ontopolíticas para a esfera do público sem qualquer tipo de constrangimento. É um pluralismo que atinge as crenças e espiritualidades teístas quanto não-teistas dos participantes sem mais ignorá-las (PABST, 2012).

Escrevendo extensivamente sobre a relação entre fé e política, Connolly permite um diálogo com os crentes [religiosos] que são a grande maioria nos Estados Unidos. Para Chambers; Carver (2008, p. 02), os argumentos de Connolly, emergem de formas particulares do contexto específico na relação entre religião e política num cenário político mais ampliado. Tal relação, se mostra como distinta quando comparada ao contexto europeu (TAYLOR, 2007). Todavia, sua forma de pensar, por mais que esteja localizada numa tradição e num contexto da história política americana, insiste em espraiar-se para uma reflexão da ação política numa esfera global. Isto torna suas contribuições muito relevantes na área das relações internacionais, conforme aponta Pabst (2012).

São estas, alternativas necessárias para mostrar que as minorias estão ativas, não entrincheiradas e sem afrontamentos à neutralidade secular. Esta tese reside mais na aceitação de lógicas da micropolítica do que no banimento de liberais e secularistas para o campo do combate quando dos momentos políticos de deliberação pública (CONNOLLY, 2011, p. 653).

A obra Why I am not a secularist? publicada em 1999, indica o seu repúdio à doutrina secularista vigente por considerá-la insuficiente e estreita demais ante ao crescente pluralismo das sociedades democráticas modernas. Assevera que ?o secularismo deve ser repensado, mas não eliminado? (CONNOLLY, 1999, p. 19). Um efeito direto deste dilema reside ainda hoje na incapacidade de se marcar uma linha divisória firme entre o âmbito público e a esfera privada. Isso permite que certos grupos religiosos fanáticos apostem na restauração de um Estado teocrático, na mesma medida que se permitem críticas à neutralidade da esfera pública (CONNOLLY, 1999).

Ao se referir ao dilema público/privado, entendido por Connolly como o velho modus vivendi sobre o qual se alicerçam as doutrinas secularistas, afirma que esse posicionamento, iniciado com a

secularização da vida pública foi crucial para a salvaguarda da liberdade individual, o pluralismo democrático, os direitos individuais, a razão pública e a primazia do Estado. A chave para tal proveito histórico, foi a separação da Igreja e do Estado e a aceitação generalizada da razão pública para a realização de acordos em todos aqueles assuntos relacionados à religião (CONNOLLY, 1999, p. 20).

Este divórcio entre o mundo da política e das orientações religiosas resvala diretamente no hiato entre o discurso público e temas da ordem do mundo metafísico. Efeito disso, é a perda do micropolítico, dos costumes, dos rituais; relevantes para educação dos sentidos, composição das virtudes públicas e recomposição da textura social (CONNOLLY, 2011).

Todavia, o secularismo não é central no pensamento de Connolly. Seu diálogo ocorre em função da noção de pluralismo profundo, este, em curso acentuado nas sociedades democráticas. Por essa razão, o secularismo necessita ser repensando. Em Castro (2012), a proposta de Connolly está em edificar um novo modo de ação adequado para o debate público sobre a maioria dos problemas prementes colocados pelas sociedades marcadas por um pluralismo multidimensional.

Connolly (2011) sugere duas agendas de trabalho como forma de promoção do dilema do profundo pluralismo: i) a promoção das virtudes do pluralismo, como a resistência à violência, por exemplo e ii) o banimento de posturas, raciais, nacionais, religiosidades e políticas unitaristas aliadas à posicionamentos econômico-políticos.

Nesse aspecto, aos cidadãos não se deveria ser negada sua participação ancorada em posições religiosas e metafísicas particulares. Nessa perspectiva é que se dá o encaixe da ontopolítica Connollyana. Nela, se acoplariam as posturas metafísicas e suprassensíveis nas dinâmicas democráticas do cotidiano. Desta forma, a opinião dos cidadãos seria viável e se estreitaria o secularismo evitando uma existência subterrânea fora das normas da justiça.

3.Diálogos sobre a laicidade e a entrada no contexto brasileiro

Sob a grande família dos termos relacionados à secularização, o secularismo se aproxima do conceito de laicidade. Para Casanova (2011), laicização seria o correspondente direto para os países católicos da cristandade latina (secularização estaria para os países protestantes) aonde a oposição laico/clerical apresentaria maior rigidez e a oposição entre religioso/civil mostraria sua força por meio do anticlericalismo. Nesse sentido, a religião ficaria restrita à esfera do privado.

Para Ranquetat Jr (2008, p. 70)

Os processos de laicização e secularização, de emancipação das diversas esferas da vida social da religião, apresentam-se de forma diferenciada nos países católicos e nos países protestantes. Nos países católicos a emancipação é marcada pelo conflito entre grupos clericais, religiosos e grupos laicistas, anti-clericais.

Para o caso francês, por exemplo, la laicité serviria como modelo paradigmático e correspondente direto à laicização. La Laïcité quando traduzida para a língua inglesa, temos a referência à secularism ou natural secular condição essa atribuída à estados políticos.

Em Mariano (2011, p. 245),

cumpre observar ainda que, na literatura sociológica de língua inglesa, os vocábulos secularism, secular State e secularist têm, em geral, o mesmo sentido de laicização institucional (do Estado e do ensino público), de Estado laico e de laicista, respectivamente. Isto é, tais vocábulos (derivados das mesmas famílias dos termos secularização e laicidade) contêm acepções análogas e intercambiáveis. E nenhum deles é mais ou menos preciso que seu par.

Nesse aspecto, ?A noção de laicidade, de modo sucinto, recobre especificamente à regulação política, jurídica e institucional das relações entre religião e política, igreja e Estado em contextos pluralistas [...] (MARIANO, 2011, p. 244).

Em consulta à Catroga (2006) constata-se que a expressão laicidade deriva do termo laico ou leigo. Etimologicamente laico se origina do grego primitivo laós, que significa povo ou gente do povo. De laós deriva a palavra grega laikós de onde surgiu o termo latino laicus.

Para Bracho (2005), é preciso enfatizar que a laicidade é sobretudo um fenômeno político e não um problema religioso, ou seja, ela deriva do Estado e não da religião. É o Estado que se afirma e em alguns casos, impõe a laicidade. Para Baubérot (2016), a iniciativa laicizadora pode ter como ponto de partida setores da sociedade civil, mas em regra geral é que ocorra uma mobilização e mediação do político para que as intenções laicizadoras se operacionalizem e se realizem empiricamente.

Nesse aspecto, Giumbelli (2012) ao fazer referência à obra Laïcités sans fronteire de Baubérot e Milot (2011), esclarece que a laicidade possui um caráter negativo, restritivo, isto é, trata da exclusão ou ausência da religião da esfera pública. A neutralidade do Estado em matéria religiosa seria uma prerrogativa. Esta neutralidade apresenta dois sentidos diferentes: (i) exclusão da religião do Estado e da Esfera pública e (ii) imparcialidade do Estado com respeito às religiões, o que resulta na necessidade do Estado em tratar com igualdade as religiões.

No que concerne às teses do nosso artigo, a partir da hipótese traçada, [o secularismo como alternativa à laicidade] Ranquetat Jr (2008) permite-se intuir que a problemática da laicidade estaria no laicismo, nesse aspecto, a noção de secularismo em Connolly atuaria como alternativa ao laicismo, pois este tem um caráter combativo e anti-religioso.

4.O que falar da Laicidade no Brasil?

No Brasil, a constituição imperial de 1824 já garantia o direito à liberdade religiosa a outras religiões além do catolicismo. Apesar da união entre Estado e Igreja Católica, sendo esta a religião oficial do império, já existia neste período um determinado grau de liberdade religiosa (MARIANO, 2002). Na argumentação de Mariano (2011), para o Estado brasileiro, a laicidade nunca foi um valor nuclear, constitutivo da República. O que teríamos, como efeito dessa condição, seria uma quase laicidade. Percebemos ? assevera Mariano (2002) -, sempre o conluio com a religião e diferentes denominações religiosas sob formas de ações utilitaristas voltadas para a introdução de conteúdos religiosos, muitas vezes em desacordo com a dinâmica da laicidade. Em Oro (2011, p. 229) ?a pretensa neutralidade do Estado em relação à religião, subentendida na noção de separação entre o poder temporal e o espiritual, constitui mais um ideal do que uma realidade. Isto, aliás, não parece ser um fenômeno somente brasileiro?. Tais casos podem ser observados em demais casos de relação entre Estado e Igreja no contexto Latino Americano, exemplo.

Dada a nossa hipótese de trabalho ? o secularismo como alternativa à laicidade -, entendemos aqui uma linha compreensiva como justificativa para o seu uso: pensar a modernidade no Brasil em um contexto tendencialmente global (TAVOLARO, 2005). Ao mobilizar os conceitos de secularismo e laicidade neste artigo, o faremos sob o escrutínio de um

discurso da modernidade que se pretende sociológico por excelência em seus esforços explicativos e interpretativos de se lidar com formas de sociabilidade que se consolidam no Brasil contemporâneo e em outros contextos modernos como resultado contingente do confronto ente projetos sociais, demandas, concepções de mundo e interesses (TAVOLARO, 2005, p. 06).

Acredito que nessa lógica, sob a égide de sociedades profundamente plurais em democracias contemporâneas que tanto enfatiza Connolly, faço a conexão. Não caberia mais o velho modus vivendis, secularismo ortodoxo de separação de fronteira entre o religioso na esfera do privado e o público ausente desse religioso, haja vista que ele é constitutivo da identidade do indivíduo. Como efeito da permanência dessa lógica binária, muitos grupos demandantes ? próprio de sociedades plurais ? não participariam daquilo que ele chama de ?círculos eleitorais?. Seriam esses, grupos minorizados. Por círculos eleitorais, entende-se um determinado grupo de indivíduos e demandantes que inflacionariam a agenda pública a partir de seus interesses. Poderiam ou não serem grupos minoritários.

O conceito de minorização em Connolly é relevante na medida em que permite a entrada de diferentes grupos em disputa no cenário político. Por minorização, entende Connolly (2011, p. 651), ancorado em Matt Scherer (2013), como um complexo processo pelos quais mais minorias de vários tipos se cristalizam e mais visível, incluindo o aumento da diversidade dentro e entre cada um dos domínios da religião, afiliação étnica, faixa etária, primeira língua, sexo, organização familiar e filiação sexual.

Quais seriam esses grupos? A partir das teses de Connolly (CHAMBERS; CARVER, 2008, p. 145) explicita que ações públicas de orientação cristã, secularistas, de defesa da cidadania democrática, grupos ligados ao feminismo, ao direito dos homossexuais, de defesa da eutanásia assistida, entre outros, exemplificam a variada gama de movimentos que vêm se arriscando a participar da política, obtendo sucesso de alguma forma.

A partir dessa afirmativa, podemos alargar compreensões para o contexto brasileiro em que determinadas minorias buscam a laicidade do Estado, não exclusivamente pela liberdade de crença numa lógica teísta ou da fé, mas para lhe ter assegurado direitos civis mais ampliados.

A democracia plural no Brasil tem levado a emergência de grupos que encontram na laicidade do Estado um aliado. Entretanto, simbolicamente o conceito de laicidade, da maneira como é representado denota quase que exclusivamente um conflito, marcadamente entre o político e o religioso. E a permanência dessa marca conflitiva entre o político e o religioso se sustenta à medida que grupos religiosos têm sua entrada na esfera institucional da política

E como há a entrada de grupos religiosos no cenário das decisões políticas, como no caso dos adeptos ao pentecostalismo (MARIANO, 2011), o desejo pelo pluralismo profundo em sociedades democráticas contemporâneas, a exemplo do Brasil ? precisa superar esse obstáculo. Em dois aspectos: i)a incapacidade dos Estados regulares a laicidade e ii) o espirito religioso hegemônico e majoritário que ocupa os espaços públicos a partir da entrada de grupos religiosos. Espaço este antes ocupado pelos católicos, atualmente, pelos pentecostais.

Sobre esse aspecto, corrobora Mariano (2011, p. 254)

A laicidade estatal no Brasil não somente não dispõe de força normativa e ascendência cultural para promover a secularização da sociedade e para assegurar sua própria reprodução, como tem sido acuada pelo avanço de grupos católicos e evangélicos politicamente organizados e mobilizados para intervir na esfera pública.

No Brasil, opera uma lógica de laicidade que exige do Estado uma abertura para a liberdade de grupos religiosos minoritários (ORO, 2011, GIUMBELLI, 2008 MARIANO, 2011). Frente a esse fato, pouca expressão haveria dos demais grupos minoritários. O que defendo, a partir de Connolly, é que a laicidade deva ser pensada em função da democracia. Pois, na análise deste conceito desde a sua gênese, fica posta em sua grande maioria, um embate entre grupos e ou pólos de forças. Por esse motivo, a laicidade não daria conta do debate contemporâneo acerca das intersecções entre religião e política.

Esse movimento ? o de embate -, se deu sobretudo pelos pentecostais, a partir de 1989. As reivindicações dos grupos evangélicos/pentecostais, ?recentes por ?liberdade religiosa?, esse sim, típicas de uma minoria, vêm seguidas de ações e estilos que insinuam um projeto de maioria. Parece-me que as formas de presença tematizadas neste artigo a propósito dos evangélicos ratificam essa dualidade e seus dilemas (GIUMBELLI, 2008, p. 96).

Grupos evangélicos, atualmente, propõem-se

as tarefas de combater, no Congresso Nacional, a descriminalização do aborto e do consumo de drogas, a união civil de homossexuais e a imoralidade, de defender a moral cristã, a família, os bons costumes, a liberdade religiosa e de culto e de demandar concessões de emissoras de rádio e tevê e de recursos públicos para suas organizações religiosas e assistenciais. Os pentecostais, ao mesmo tempo que faziam referência ao tradicional adversário católico, aludiam a seus adversários laicos (PIERUCCI, 1989; FRESTON, 1993 apud MARIANO, 2011, p. 252).

A laicidade no Brasil promove a liberdade religiosa, enquanto que o secularismo em Connolly está como um catalizador para o pluralismo multidimensional profundo nas sociedades democráticas contemporâneas. Ou seja, permite a emergência grupos heterogêneos na esfera pública dotados de todas as suas potencialidades.

Cabe aqui uma questão de fundo para se pensar a aplicação da hipótese anteriormente proposta: o Brasil já poderia ser denominado sociedade profundamente pluralista? Ora, o que temos, são grupos que desejam ocupar a esfera pública e apresentar suas demandas, mas ainda não encontram abertura suficiente. Grupos religiosos minoritários, LGBTT, ateístas, feministas. ?Demandas em torno de questões que envolvem leis concernente aos interesses de grupos homoafetivos e direitos reprodutivos tem sido impedido de avançar por conta da ação de parlamentares ligados as igrejas pentecostalizadas? (SOFIATI, 2015, p. 340)

Lideranças políticas pentecostais, tem se unido em torno dos temas morais - como a questão do aborto, casamento homoafetivo, pesquisas com células tronco, clones, temas sobre educação e identidade de gênero, entre outros ? e seus posicionamentos tem sido majoritariamente de oposição a qualquer avanço que contemplem os interesses dos movimentos indenitários em defesa de direitos individuais e coletivos de grupos marginalizados [...] (SOFIATI, 2015, p. 344).

Intuímos que nesse aspecto, o espaço público brasileiro opera ao contrário de outras sociedades, isto é, permite a manifestação de grupos favoráveis à religião e não opositores (aqui entendendo o tipo de laicidade constitucional e não de Estado). Ações religiosas de grupos majoritários são legitimadas, em contrapartida, o Estado torna-se frouxo tanto na garantia de liberdade religiosa, quanto na emergência íntegra de grupos minoritários, privilegiando grupos maioritários.

Distinto do que pensa Viana (2014, p. 368) quando afirma que ?o Estado laico e a liberdade religiosa, no plano constitucional, estão garantidos. No plano social, o processo de secularização, como mecanismo para assegurar o próprio ?fato do pluralismo? de crenças e descrenças, ainda enfrenta grandes desafios? (VIANA, 2014, p. 368).

Embora pareça razoável ?o movimento de redefinição da fronteira público/privado [...] a relação entre religião e política, [...] a desprivatização ou publicização do religioso como força social e política, caracterizada pela reabertura dos espaços públicos à ação organizada de instituições religiosas no país? BURITY, 2001, apud MARIANO, 2011, p. 254). Assiste-se com desconfiança a entrada dos grupos religiosos no campo político, há medida que seus discursos não são plurais além de passarem a operar como refratários dos reclames e exigências dos grupos laicos que emergem da sociedade civil.

No escopo do dever ser, a alternativa [secularismo à laicidade] esboçada a partir de Connolly, passaria por um ?ethos pós-secular de engajamento público entre diversas espiritualidades, que já fez avanços consideráveis em vários lugares?. A negociação de um ethos de engajamento fornece um secularismo como alternativa para que partidários [participantes da vida pública] não deixem seus pressupostos básicos na esfera do privado, na medida que atuam na esfera pública. Padrões de operacionalização desse ethos encontraria algum efeito se infiltrado nas burocracias militares, nas práticas de casamento, nos padrões de imigração, nos programas escolares, na organização dos cuidados de saúde, nas práticas educativas, nas campanhas políticas, entre outros espaços.

A história do pensamento político ocidental é repleta de fragmentos de limites e com critérios consumados para inclusão: as formas platônicas, o cristianismo, um Deus ecumênico, fé metafísica no homo duplex, o secularismo ortodoxo, o consenso racional, a civilização ocidental ... todos têm sido apresentados em algum momento como medida final do que deve ser incluído e excluído (CHAMBERS; CARVER, 2008, p.145).

Em Connolly, o secularismo em democracias profundamente plurais, avançaria como uma alternativa ao monoteísmo na vida pública. Haja vista que Decorrente dessa visão [monoteísta], fica atrelado uma concepção unitária de moralidade, compatíveis com a fé cristã. O modelo proposto pelo teórico da política em discussão, rompe com o pluralismo convencional centrado no Estado, nos espaços do indivíduo normal, nos territórios protegidos, nas condições de segurança nacional, na diferença de gênero, na normalidade da heterossexualidade, nas formas ortodoxas de economia, no caráter genérico da justiça, da razão, da identidade e da natureza (CHAMBERS; CARVER, 2008, p. 39).

5.Considerações finais

O secularismo não se encaixa em modelos políticos seculares e nem nos teocráticos. É tanto uma doutrina quanto um conjunto de práticas que rompem e ultrapassem com muitas dessas categorias. A força dos escritos de Connolly pode ser encontrada em sua atualidade, na sua capacidade de falar com o campo da teoria política de uma forma que é relevante, produtiva e inovadora. Ele fala diretamente a esse mundo e suas obras refletem um envolvimento direto com determinados contextos (CHAMBERS; CARVER, 2008).

Connolly remodela os termos de teoria democrática tradicional, mas faz isso de uma maneira ampla no que tange as questões e preocupações da filosofia política, como a exemplo do pluralismo e da luta democrática. São alguns dos problemas ou questões que ecoam através das ciências sociais e humanidades. Estas categorias claramente atravessam fronteiras disciplinares, disputas epistemológicas e conflitos políticos. Cada uma delas oferece algo diferente para diferentes leitores, enquanto coletivamente eles expressam a amplitude do impacto das teorias Connolly para compreensão do campo político atual.

Ao criticar a secularização ocidental marcadamente de orientação kantiana, e iluminista, Connolly acusa-a de ser: (i) uma forma rasa do pluralismo da vida pública [separação entre o público e o privado]; (ii) de dar baixa atenção e legitimidade para o movimento heterogêneos, de formação de identidades, bens de fé e direitos e (iii) não atenção à micropolítica e suas inúmeras formas de alianças e vínculos.

Articular Connolly como alternativa à lacidade no Brasil, parece favorável pois haveria aí um caráter normativo imputado pela sua teoria, o que permite devidas relações. Acredita-se que esse intento não se apresenta como uma emergência pelo fato das nossas sociedades ainda não se mostrarem como democracias plurais. Nas palavras de Mariano (2011, p. 254) - sobre nossa constituição republicana -, aonde a separação entre Igreja e Estado jamais resultara na privatização do religioso e muito menos na exclusão mútua entre política e religião.

6.Referências Bibliográficas

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Notas

[1] Mestre e doutorando em Sociologia Politica pela UFSC.
[2] Uma breve trajetória deste intelectual, conferir em: http://politicalscience.jhu.edu/directory/william-connolly/>. Acesso em: 05 dez 2017.


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