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Poderias fisgar com o anzol o Leviatã? Considerações sobre o Estado, poder e alteridade
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 2, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 2, 2017

Recepção: 07 Setembro 2017

Aprovação: 21 Novembro 2017

Resumo: O Estado, e a ciência e consequentemente e a verdade são construídas por pessoas que estão em uma situação de poder. O poder é constituído por essas mesmas pessoas. Essa relação traz certos problemas, uma vez que o poder e a ciência não se constituem democraticamente para todos como havia sido prometido na modernidade. Esse ensaio quer considerar alguns pensadores da modernidade que trabalham com poder e ciência. Através da leitura de autores como Latour, Focault, Bourdieu, dentre outros esse trabalho pretende apontar alguns dos problemas da relação entre Estado, poder e como isso pode afetar o cotidiano do ser em especial a diferença e alteridade.

Palavras-chave: s: Poder, Ciência, sociedade, alteridade.

Abstract: The state, and science and therefore the truth, are built by people who are in a power situation. The government is constituted by those same people. This relationship brings certain problems, since the power and science is if not democratically to how he had been promised in modernity. This essay wants to consider some thinkers of modernity working with power and science. By reading authors such as Latour, Foucault, Bourdieu, among others this work points to some of the problems of the relationship between state power and how it can affect the daily life of especially the difference and otherness.

Keywords: Power, Science, Society, otherness.



Fizeste em pedaços as cabeças do leviatã, e o deste por mantimento aos habitantes do deserto. Salmos 74:14

1- O conflito humano

É certo que a historia da humanidade é plena em conflitos. Nem só conflito de classes como afirma a perspectiva histórica marxista, mas diversos, em que sejam bélicos, econômicos, religiosos, emocionais ou ideológicos. A história da humanidade se faz marcada pelo conflito[2]. Hobbes já afirmava que o homem é o Lobo do homem. Não se concorda aqui com todas as afirmações Hobbesianas, mas sim com essa seu mais famoso epítome, deveras: o homem é o Lobo do homem.

Não que nas sociedades ditas primitivas o homem nasça mal e a civilização o salvará, como diz o pensamento Hobbesiano, nem ao contrario com queria Rousseau. Se pegarmos exemplos de sociedades ágrafas, como por exemplo, os tupinambás brasileiros, verifica-se que a guerra e o conflito tinha uma importante função social de constituição da sua sociedade (FERNANDES, 1970). Isto não quer dizer que eram maus, mas a guerra tinha um importante lugar em sua cosmovisão. Das sociedades modernas então nem é necessário apontar, basta-nos as noticias (e o pensamento Maquiavélico). Em toda a sua história a humanidade teve que se reconfigurar através das diversas formas de conflito.

E em toda a história humana o conflito vai se colocando como algo importante nas forças que regem a humanidade. Não é a única: o amor, a religião, a economia, etnia, gênero, etc.. todas essas dentre outras são forças que configuram os modos de ser e fazer humanos. O conflito é importante, mais do que os episódios de conflito em si, mas pelas maneiras de que os homens superam e se reorganizam no pós-conflito.

Houve conflitos na antiguidade, na conquista hegemônica dos impérios, na idade média, nas grandes navegações, enfim: em toda história humana. A modernidade é permeada de possibilidade conflitos eficientemente sangrentos devido a capacidade científica de suas mortais máquinas de guerra. A pós-modernidade se inicia com a bomba atômica após um século de conflitos armados.

Simbolicamente o pós-modernismo nasceu às 8 horas e 15 minutos do dia 6 de agosto de 1945, quando a bomba atômica explodiu sobre Hiroxima. Ali a modernidade ? equivalente à civilização industrial ? encerrou seu capítulo no livro da História, ao superar seu poder criador pela força destruidora. Desde então, o Apocalipse ficou mais próximo. (TOYNBEE,1987, p.206)

Os pensadores modernos clássicos, não estavam imunes a essa percepção conflituosa da humanidade. Cada qual deles em algum momento quer explicar a origem dos conflitos a sua maneira e propor soluções. Rousseau (1978) propôs o sacrifício das vontades em um contrato social, anteriormente Maquiavel já idealizara o rígido controle político por um líder forte, Montesquieu (2011) idealizou a submissão dos homens as leis justas, e Hobbes (2006) sugeria, grosso modo, que todo homem renunciasse a uma parte de seus desejos e chegasse a um acordo mútuo de não aniquilação com os outros na criação de um Estado que envolvesse tudo. Um grande monstro bíblico, o leviatã[3], representado por outra pessoa, o Estado poderoso e forte para impor suas vontades ao rebelde ser humano. Todos esses pensadores queriam de alguma forma ou de outra deixar soluções para acabar com os conflitos humanos.

O Estado hobbesiano tem como característica principal a força sobre os seus governados, sendo comparado ao próprio Leviatã, da mítica judaico-cristã, um monstro cuja armadura é feita de escamas interpretada como os súditos, governando de forma soberana. O Leviatã (O Estado soberano) vai concentrar o controle da sociedade, em nome da paz, da segurança e da ordem social, nas palavras de Hobbes:

?Isso é mais do que consentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens [...] Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes ? com toda reverência ? daquele deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa? [...] É nele que consiste a essência do Estado, que pode ser assim definida: ?Uma grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns aos outros, para em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum?. O soberano é aquele que representa essa pessoa?. (HOBBES, 2003, p.130-1 31).

Assim com um conjunto de ideais sobre de como, quando e porque os homens deveriam ser governados, de como deveria ser a relação com a propriedade privada e os direitos se inicia politicamente a modernidade política, uma modernidade governada pela razão. Embora não seja consenso uma data onde ele se inicia.

2 - A modernidade desconfigurada

Não é fácil localizar a modernidade na história (HUYSSEN, 1986), vários autores divergem, alguns dizem que começou com a invenção dos estados- nação, outros com queda da bastilha, outros dizem que foi com a invenção da maquina a vapor de James Watt, mas a maioria das escolas históricas esta de acordo que começo com as grandes navegações e a queda de Constantinopla. Modernidade é a denominação de um conjunto de fenômenos sociais e é também o resultado de uma série de eventos marcantes no mundo ocidental ocorridos nos últimos quinhentos anos, aproximadamente.

Mais do que uma focalização e um ponto fixo na historia a modernidade é uma condição humana. Uma crença na certeza do cientificismo e da racionalidade, na qual as relações sociais são mudadas. Seu termo seguido: pós-modernidade não é algo dividido dela, é apenas a maximização do individualismo, enquanto na modernidade o seu ápice ideológico, a focalização dos supostos direitos foram direitos políticos, hoje o foco é o individuo, mas consideramos isso apenas uma consequência da modernidade e não um período disjuntivo dela. Talvez a melhor definição de pós-moderno seja a de Lyotard. O pós-moderno, como Lyotard (1984, p.28) o definiu, é "a incredulidade para com as metanarrativas?, inclusive é uma crítica às representações religiosas. E uma maximização do projeto moderno de independência de Deus (idem) ao homem que fica individualizado na historia e, portanto, egoísta.

A modernidade trouxe uma nova consciência do sentido histórico, uma nova representação da temporalidade histórica e, com ela, o mundo se fragmentou em valores distintos. O espírito capitalista é moderno, desencantado, secularizado, racional. A modernidade é o desenvolvimento do processo de progresso, revolução, utopia; a ideia de história está dominada pelos conceitos de razão, consciência, sujeito, verdade e universal.

A criação do Estado moderno estava subjugada a esse ideal, pensava-se que os homens racionalmente iriam se entregar a um estado racional e ordeiro e que todos os conflitos do homem estariam acabados. Iria ser uma era de ouro para a humanidade. Prometia-se a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Ledo engano, o projeto moderno em sua estrutura política falha.

A fé, segundo Giddens (2002), passa a ser dada ao perito (não mais a divindade) e, portanto não mais a religião, que não responde mais nenhum anseio humano. A ciência responde, ou melhor, pretende responder (mas não consegue) aos anseios do individuo. Mas todos esses fatos históricos geram uma crise, pois o projeto moderno falha em sua promessa de dar ao individuo e ao povo a prometida, liberdade, igualdade e fraternidade. Não se tem liberdade a não ser para consumir o que a comunicação de massa lhe impõe, não há igualdade e sim concentração de renda, e de fraternidade é um valor perdido junto com as tradições religiosas, nem se fala nela mais, o individualismo é o que pauta as relações.

O projeto do Estado Hobbesiano falha. Vivemos uma era de incertezas e risco. De certo modo há inúmeras explicações do porque o projeto moderno falha, a posição de Bruno Latour sobre isso é deveras interessante. Para críticar a analise de mundo até então feita, Latour crítica os paradigmas pelos quais houve a compreensão da situação do mundo. Para Latour, o mundo deve ser tratado como um conjunto de ?redes? que atravessam esses três paradigmas - ?objetivista?, ?sociologizante? e ?semiótico? - pois, não sendo apenas de natureza objetiva, social ou discursiva, são ao mesmo tempo reais, coletivas e discursivas. (LATOUR, 1994, p. 12).

O que Latour quer dizer é que os problemas da humanidade não podem ser simplesmente compreendidos por um paradigma ou pensamento racional, é na realidade cotidiana que devemos ver as explicações das falhas da modernidade e, sobretudo do Estado moderno que pretendia estar sob construção da racionalidade cientifica. A modernidade e sua única fonte de verdade: a ciência, está limitada a vários fatores, porém foi extremamente influente no projeto moderno (RORTY, 1989). Porém ?A ciência visa o controle dos objetos e das coisas e não busca o puro conhecimento pois sua finalidade está embotada pelo poder assim ela tira algumas coisas do campo de visão (idem. p. 62)? . A ciência diz o que é ou não é verdade, o que ou não legitimo discutir. Westhelle (1992, p. 266) pergunta: "porque não discutir alquimia, astrologia, a benzedura ou mesmo a existência de Deus?".

Westhelle (1992, p.267) citando Latour faz a pergunta desse:

Que sociedade é esta onde uma formula matemática (que supostamente explica o universo, uau !!!!!!) tem mais credibilidade do que qualquer outra coisa: o senso comum, outros sentidos além da visão, uma autoridade política ou mesmo as escrituras? (parênteses nossos)

Essa formula matemática-física-química teria poder de supostamente explicar o universo (mas não tem), falhou em varias explicações, em dar sentido a vida, em explicar as sensações e memórias intimas que um cheiro pode trazer, em explicar o amor e falhou, no sentido moriniano em seu próprio projeto visto que a ciência enfrenta agora uma crise em si mesma.

Ocorre que as falhas, aquilo que não pode ser previsto pela pretensa ciências, pelo pretenso planejamento, o caos, a quebra, e o que não pode ser previsto é rejeitado pelo projeto moderno. O mundo na modernidade só pode ser valido pelo aquilo que poderia ser dado em um gráfico matemático, através do que Morin (1990) chama de paradigma Newtoniano-Baconiano-Cartesiano ou grande paradigma do ocidente. Surgiu uma forma hegemônica de conhecimento é o que é valido, e conhecimento se torna poder econômico, economia se torna números e gráficos. Assim, nesse mundo moderno coisas abstratas são consideradas menos importantes como Deus, Amor, arte etc... Além disso, algo que o mundo moderno proporcionou são as múltiplas "leituras da vida" através de formulas matemáticas e físicas. As coisas se tornam uniformes, com figuras diagramas, lista e textos, e o cientista é aquele que é visto como a pessoa que mantém a humanidade como algo além dela mesma (RORTY, 1998, p. 10), ou seja, exerce um sacerdócio também, assim as verdades que a humanidade busca foram imposta serem respondidas pela ciência.

3- O estado e os conflitos

No Estado planejado da modernidade existem vários ruídos que afetam as vidas das pessoas que sistematicamente falham: a economia, as crises as fomes, as guerras, os conflitos que pretendiam ser evitados, não cabem no planejamento cientifico do Estado. Ou pior, se há fome, conflito, dor, é porque o Estado, aliado a economia assim o permite. Assim não há explicação possível pela racionalidade.

?Os fatos científicos são construídos, mas não podem ser reduzidos ao social porque ele está povoado por objetos mobilizados para construí-lo. O agente desta construção provém de um conjunto de práticas que a noção de desconstrução capta da pior maneira possível.? (LATOUR,1994, p.12)

Desse modo a modernidade, é ao mesmo tempo crítica, tenta ser consciente, mas é limitada e incapaz de oferecer uma teoria que explique sua falha e que guie a humanidade a uma possível utopia. Para a modernidade tudo deve ser classificável, tudo tem um lugar na lente de sua matriz cartesiana e na sua classificação biológica, mas Latour aponta que a realidade não é bem assim. As praticas e modos de pensar se pretendiam distintas, mas não o são. Assim ela aponta as distinções falhas na modernidade:

a) um conjunto de práticas que cria ?híbridos?, ou seja, misturas de natureza e cultura. São aquilo que o autor denomina de ?redes?, conectando, por exemplo, técnica e estratégia científica e industrial e suscitando preocupações interdisciplinares;

b) outro conjunto, de natureza crítica ou analítica - ?purificação?, na linguagem do autor - que cria duas zonas ontológicas distintas: a dos humanos e a dos não-humanos. Esse conjunto seria o responsável por estabelecer uma partição entre o mundo natural, uma sociedade com interesses e questões previsíveis e estáveis e um discurso independente de ambos.

Latour propõe que devemos deixar de lado a manutenção da suposta distinção típica das visões cientificistas, sociológicas e semióticas, pois o que não pode ser visto dentro destas distinções é hibrido. Assim o mundo explicado por essa caixinha ontológica produz uma indefinida ?proliferação dos híbridos?. Portanto, deve-se superar a distinção cultura/natureza, humano/não-humano, nossas atividades serão uma contínua construção de problemas e situações interpretados como possuindo natureza científica, política, social, econômica, ideológica etc. que a racionalidade moderna não da conta de explicar.

Nas sociedades antigas não havia diferença entre o sonho e a realidade, entre espírito e verdade, é o paradigma dualista cartesiano que vem trazer essas dualidades. Latour aponta que as sociedades pré-modernas não existia separação e hibridismo, podia-se muito bem conceber, por exemplo, um minotauro ou um centauro ou um asno que falasse. Assim a humanidade perde a chance de conhecer sua própria complexidade. Assim as pessoas modernas não conseguem entender aquilo que não se encaixa nas suas leis racionais ou padronizadas. Tem dificuldade com o diferente, com o gay, com a mulher independente, com tudo aquilo que está fora do seu padrão legal ou cientificamente racional.

Assim Latour propõe uma tentativa de desmistificação ou ?desfetichização? acerca do processo de separação ontológica. Elucidando-se o processo, seríamos capazes de deter a ?proliferação dos monstros?. (p. 17). Hinkelammert (2008, p. 57) remete a uma frase de Goya ?a razão ao sonhar produz monstros?, visto que a razão não sonha: planeja, não abstrai: calcula. A razão substituiu as necessidades humanas pelas preferências do mercado (idem, p. 58). Nem a morte pode se discutir mais A modernidade criou segundo Giddens (2002, p. 9) certo sequestro de experiências, ou seja, através do sistema auto-referenciado de conhecimento e de poder separa-se da vida certos conhecimentos naturais, como enfermidade loucura, criminalidade, morte, sexualidade. São direitos raptados e postos a serviços da racionalidade e da garantia de pagamento civil.

As garantias de direitos humanos foram cooptadas por direitos que na verdade só garantem a globalização do mercado, a propriedade privada e a miséria e morte dos excluídos. Embora o mundo possa reagir e enfrentar tais problemas, quem enfrenta leva a pecha de terrorista e criminosa e outra vez combatida por leis que só atendem as necessidades globalizantes.

É criado um mito do poder, um dos vários mitos pela qual a sociedade humana se configura, assim como o mito do sucesso, do crescimento patológico, da mão invisível, do capital justo etc..., ocorre que a mesma modernidade que não considera verdade os mitos antigos gregos se fundamenta e se relaciona nesses novos mitos. O que é pior mitos protegidos pela lei e pelo suposto estado democrático de direito. São os mitos modernos. Mitos que direcionam a visão da sociedade, o do crescimento ilimitado patológico(que causa problemas mentais e ecológicos), o da democracia racial(ledo engano), o da igualdade de oportunidades e de direitos(igualdade? Onde?), o da liberdade(apenas para consumir) o do livre-mercado(como se fora possível ele estar livres de forças que o dominam) etc...apesar da sociedade viver todos esses mitos, despreza os mitos fundantes de uma melhor visão de mundo.

Na visão de Latour, essa disjunção entre poderes naturais e políticos no remete a uma pré-modernidade. Desse modo segundo o autor não poderíamos ser modernos.

?Do momento em que traçamos este espaço simétrico, restabelecendo o entendimento comum que organiza a separação dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser modernos.? (op. Cit. p.21)

Ainda segundo Latour, seria as ciências sociais em especial à antropologia, que ao ouvir o espaço humano-não humano, e reintegrar essa simetria ouvindo não a ciência mas as pessoas é que essa simetria seria restituída, somente essa percepção antropológica pode apontar onde e como se organiza e se produz essa separação. Desse modo poder-se-ia desmitificar, desvendar a separação ocorrida no inicio da modernidade, sobretudo entre o mundo e suas supostas e pseudo - representações científicas, entre a pessoa do Estado e das organizações das pessoas. Segundo sua palavras:

?O etnólogo do nosso mundo deve colocar-se no ponto comum, onde se dividem os papéis, as ações, as competências que irão permitir certa entidade como animal ou material, uma outra como sujeito de direito, outra como dotada de consciência, ou maquinal e outra como inconsciente ou incapaz. Ele deve até mesmo comparar as formas sempre diferentes de definir ou não a matéria, o direito, a consciência, a alma dos animais sem partir da metafísica moderna.? (idem, p. 21)

O grande jusfilósofo Bramhall (1995) afirma que umas das maiores consequências do pensamento Hobbesiano é a noção de entidade jurídica, primeiro para o Estado, e depois para as organizações, como se ela fora viva, consciente e tivesse direitos e não as pessoas que ela representasse. Esse é um excelente exemplo da dicotomia humano X não ? Humano. Como se organizações e estados estivessem a frente de pessoas em direitos e exigências. Outro exemplo é a noção de ciência, como se ela fosse uma entidade e não um campo do conhecimento humano cujo o próprio Latour aponta essa noção deixada pela modernidade em Boyle. Sobre Boyle e Hobbes afirma Latour:

?Eles (Boyle e Hobbes) inventaram nosso mundo moderno, um mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social. (...) Os dois ramos do governo elaborados por Boyle e Hobbes só possuem autoridade quando claramente separados. (...) Cabe à ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à política; cabe à política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qualquer relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência e tecnologia.? (p.33-34, parênteses nosso)

Desse modo O estado se diz legitimo representante da vontade dos conjuntos dos homens e a ciência tem o monopólio da verdade e os cientistas seriam legítimos representantes da natureza, algo que é um mito. Para Bourdieu (1974), a ciência e o conhecimento moderno foram baseados em duas formas de conceber a realidade das coisas originadas no mesmo contexto histórico, a França do século XVIII, cujas essas bases são o Racionalismo e o Positivismo. Tais bases implicam em varias consequências epistemológicas, sendo uma delas o distanciamento cientifico. Esta metodologia de descrição e análise da experiência implica um ideal positivista da neutralidade e do distanciamento ?científico? do observador relativamente ao objeto para investigar a verdade ?pura?. Nos dizeres de Latour:

Os porta-vozes políticos irão representar a multidão implicante e calculadora dos cidadãos; os porta-vozes científicos irão de agora em diante representar a multidão muda e material dos objetos. Os primeiros traduzem aqueles que os enviam, que são mudos de nascimento. Os primeiros podem trair, os segundos, também.? (op. Cit, p. 34-35)

Ter relações pautadas pela racionalidade (hegemônica no ocidente) não era uma oferta tão ruim frente a uma ideia da idade média, de um absolutismo rigoroso e de uma crueldade cristã que invadia e destruía reinos considerados bárbaros nas cruzadas ou queimava mulheres por pensarem diferentes acusando-a de Bruxas. Porém o projeto da modernidade se mostrou tão senão mais cruel do que a idade média. Temos liberdade, porém temos outros problemas tal como: exclusão, desigualdade, fome, dentre outros. É desta situação vivida que surgem novos problemas para as ciências humanas, com excesso de informação e de abundancia em materiais que, no entanto não trouxeram a plena felicidade e organização social, com a desvalorização da força de trabalho, o excesso de produtividade e miséria, com o terror da exclusão social e dos impactos ambientais; situações que geram insegurança e desconforto. Mas focando-se em um só aspecto da modernidade, existe a crença inevitável de que a ciência é a única verdade.

A visão de mundo no moderno e em sua crise - o pós-moderno[4] - foi a certeza de que o mundo devia ser visto através de uma lente racionalizada e cientificista, na qual Deus ou a teologia não teriam lugar, ocorre que essa visão falhou fragorosamente em termos sentimentais porém teve o sucesso em conquistar o mundo. Em primeiro lugar falhou em sua própria certeza, as idéias Popperianas, a crise de paradigma de Khun, o fim das certezas de Prigogyne, bem como de outros cientistas como Feyerabend, Richard Rorty, Maturana e Morin (MORIN, 1990), demonstraram que o racionalismo poderia ser questionado e que haveria novas possibilidades de uma nova consciência ser descoberta. Inclusive Kuhn (1996) sugere ser impossível a existência de apenas uma única teoria capaz de fazer previsões e livres de valores que é o que pretende ser a ciência.

O mundo na modernidade só pode ser valido pelo aquilo que poderia ser dado em um gráfico matemático, através do que Morin (1990) chama de paradigma Newtoniano-Baconiano-Cartesiano ou grande paradigma do ocidente. Surgiu uma forma hegemônica de conhecimento é o que é valido, e conhecimento se torna poder econômico, economia se torna números e gráficos. Assim, nesse mundo moderno coisas abstratas são consideradas menos importantes como Deus, Amor, arte, as dores e paixões humanas etc... As coisas se tornam uniformes, com figuras diagramas, lista e textos, e o cientista é aquele que é visto como a pessoa que mantém a humanidade como algo além dela mesma (RORTY, 1982, p. 10), ou seja, exerce um sacerdócio também, assim as verdades que a humanidade busca foram imposta serem respondidas pela ciência.

O próprio projeto e conhecimento racionalista era uma opinião de pessoas (cientistas), que simplesmente acharam que assim estaria atrás de uma verdade pura. O projeto de conhecimento do positivismo era propor a ciência como único aspecto verdadeiro de dizer o que é ou não verdade (MORIN, 1983). Isso é chamado de dimensão ética da ciência construída e europerizada.

Latour relembra os pilares ou quatro princípios, chamados pelo autor de ?Constituição? que idealizam a sociedade hoje.:

1. Ainda que sejamos nós que construímos a natureza, ela funciona como se nós não a construíssemos;

2. Ainda que não sejamos nós que construímos a sociedade, ela funciona como se nós a construíssemos;

3. A natureza e a sociedade devem permanecer absolutamente distintas; o trabalho de ?purificação? deve permanecer absolutamente distinto do trabalho de ?mediação?;

4. Deus fica afastado da ?esfera pública?, passando a ser uma questão de foro íntimo.

O ponto essencial dessa Constituição moderna é o de tornar invisível, impensável, irrepresentável o trabalho de mediação que constrói os híbridos.(p.40)

Assim modernidade deprecia aquilo que é mais precioso para o humano, sua criação, sua complexidade sua loucura, sua paixão e renega ao estado que deveria ser ideal o controle. Ou controle da natureza pela ciência ou o controle do ser humano pelo Estado moderno. Assim a realidade é hibrida porém constantemente negada sua condição de hibridez pela ciência e pelo Estado. Poderíamos dizer: a modernidade repousa na representação de que o mundo, embora híbrido, como todos os ?coletivos?, tem essa característica negada.

?Mas os híbridos, os monstros, os mistos cuja explicação ela abandona são quase tudo, compõem não apenas nossos coletivos mas também os outros, abusivamente chamados de pré-modernos.? (op. Cit, p. 42)

Latour, afirma que a modernidade é ?ilusão?, pois subjuga a realidade a uma visão hegemônica , a ciência positivista, a teoria política clássica. ?É um não moderno todo aquele que levar em conta ao mesmo tempo a Constituição dos modernos e os agrupamentos de híbridos que ela nega.? (op. Cit p. 51).

Assim temos que nos livrar da ilusão. O despertar humano só pode ser feito em encontro com outro. Mas não como inferior mas no reconhecimento e na ação efetiva da igualdade.

4- Para recompreender o mundo

Para entender e recompreender o mundo apenas um a ciência desprovida de preconceitos como a antropologia simétrica poderia dar uma visão melhor da realidade. Deve então romper com a dicotomia das ciências ?sancionadas? e as ciências ?proscritas?, as divisões artificiais entre as sociologias do conhecimento, das crenças e das ciências. Ou seja, recuperar aquilo que humanidade tem de mais precioso.

Nesse sentido Foucault lembra sobre o campo de conhecimento da tradição que foi o principal veículo de propagação através do tempo vivido, sempre se constituiu como a principal comunicação entre os seres humanos. O conhecimento tradicional (sistematicamente combatido pela ciência), era o conjunto de saberes divididos no contato direto entre pessoas, gerador dos conhecimentos em conjunto e seus respectivos povos. Por não ser registrado de modo sistemático foi considerado carente de veracidade (por uma academia moderna que julgava o que era ou não verdade) como vários saberes sequestrados (FOUCAULT, 1999) durante a historia, no entanto, com o advento da história científica, este relato oral foi deixado para segundo plano, sendo o argumento principal para tal opção, o seu déficit de cientificidade.

Segundo Foucault, a historia das ciências a serviço da política e dos poderes (capital?) enterrou e subjugou diversos saberes que não eram passiveis de ser postos em uso monetário, tais como os saberes populares ou o ponto de vista da historia que não gerava patriotismo ou capital, ou seja foi enterrado na historia as vozes dos excluídos, dos escravos, das mulheres, dos loucos, em suma, do povo não vencedor e isso causou um tremenda perda de poder. A história oficial passa a ser contada pelos vencedores.

A ciência foi tida como única fonte de verdade afogando aqueles conhecimentos populares, que na tese de Latour diz que o antropólogo simétrico, ao dar a voz aqueles conhecimentos excluídos podem acabar com as dicotomias no mundo moderno. Enquanto Foucault aponta a necessidade da ciência moderna assumir outro caminho (1997). De um modo otimista atípico ele propõe que a ciência e a racionalidade aceite suas falhas, deve-se ter uma devolução dos ?saberes seqüestrados?. A noção de saberes sequestrados em Foucault aparece quando ele pesquisa sobre a história da loucura e acusa que a sabedoria daquilo que não era racional ou foi trancafiada ou foi tida como irracional ou ofensivamente tida como folclórica ou exótica. Assim o saber popular foi subjugado pelo poder.

Lendo a crítica de Foucault pode-se entender melhor o elogio de Latour ao Antropólogo simétrico em oposição ao tradicional. A Antropologia tradicional, em que pese o exorcismo que vem realizando desde Boas, ainda não conseguiu, de todo, livrar-se do fantasma de Levy-Bruhl. Substituir o conceito de "mito", com suas ressonâncias semânticas negativas, pelo de "narrativa religiosa", pode representar um passo à frente lembramos , que segundo Prandi (1999, p. 149), ?Levy-Bruhl acreditava na infantilidade e, portanto, na inferioridade da mentalidade primitiva? (PRANDI, 1999, p. 149). Já Franz Boas teve um importante papel na formulação do relativismo em pesquisar religiões, as ciências sociais mais esclarecidas não tratam esses aspectos culturais como mito, mas sim como uma riqueza imbuída na cultura humana. Porém muito falta ainda para que antropólogos possam realmente assumir a posição proposta por Latour. Ainda hoje, sobretudo em políticas e ideologias em todo o mundo é comum qualificar pessoas de outras culturas como inferiores.

Foucault (2008) tem uma proposição e uma luta pelo direito inalienável dos povos ao patrimônio cultural da humanidade, pela democratização dos saberes, das culturas, da comunicação e das tecnologias, valorizando os bens comuns com a finalidade de dar visibilidade aos saberes subjugados, e pelo fim do conhecimento privado e hegemônico, e por mudanças fundamentais do sistema de mídia. Seria uma avanço utópico porém funcional ao fim do fundamentalismo a criação de uma sociedade que não tivesse tanto a necessidade de crescimento racional patológico e de conhecimento jungido ao poder capital. Tal sociedade só pode existir com investimento massivo em uma educação cultural, crítica, ética e ecológica.

5- J?acusse

Para Foucault, os saberes são tipicamente aquilo que é produzido por seres humanos em convivência com outros. Sua definição diz que saberes são:

...esse conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar (...). Um saber é aquilo que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico (...); um saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso (...); finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso (...). Há saberes que são independentes das ciências (que não são nem seu esboço histórico, nem o avesso vivido); mas não há saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma.

Porém o Estado e outras formas de dominação subjuga o poder, legaliza-o e o aceita determinando a quilo que é verdade. Somente o saber do médico clínico pode curar, pode receitar e, na maioria das civilizações ocidentais, por desagradar à medicina, os saberes tradicionais podem responder por crime de charlatanismo. Nos meios jurídicos apenas provas científicas podem ser validadas em processo e não o saber popular.

Saberes científicos modernos que estão ligados à indústria capitalista tem o aval do Estado para continuar funcionando. A pesquisa tem o aval e a fiscalização do governo ainda que não beneficie totalmente a humanidade[5]. Assim financiando e recebendo impostos da indústria científica, do progresso cientifico estritamente ligado ao positivismo assim o poder e o Estado tem o papel de submeter o conhecimento ao seu sistema jurídico.

Toda ação ou pensamento contrario ou libertador é feito pelo poder algo que deve ser subjugado e preso, os loucos, as mulheres que utilizavam medicina popular, os diferentes foram sistematicamente subjugados e massacrados pelo poder, ?J?acusse?: assim acusa Foucault. Os corpos, os olhares e pensamentos diferentes foram massacrados. A partir daí Foucault percebe o papel do Estado. É um papel de dominação.

Foucault (1972) denuncia e determina que a ciência só produz e reproduz te o discurso dos dominantes, protegidos pela ordem e monopólio da força estatal, ao determinar ou não o que é a verdade, apenas se manifesta a verdade que interessa a determinados grupos, que Foucault define como ?sociedade dos discursos?.

Em toda a sociedade, a produção do discurso é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu conhecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (Foucault, 1972, p. 9).

Assim o Estado reproduz a norma de conhecimento aceito, Foucault (1999) aponta as relações de poder que fundamentam e embasam a ?sociedade dos discursos?, e que se apresentam também, como relações de força. Para Foucault, o poder não existe em si, já que carece de concretude. São as relações de força que impõe poder sobre outros seres humanos. Assim na história vai aparecendo múltiplos feixes de força e de poder, esse conjunto de forças invisíveis que controlam a materialidade das relações vai ser o que ele chama de microfísica do poder. Para verificar de como essa estrutura funciona só é possível através do confronto e resistência. Afirma o autor que as relações de poder só podem ser pensadas e percebidas sob o confronto contra poder/resistência e se oferecendo resistência contra essa força/poder; nas concepções e manifestações de resistência que é possível analisar de que forma o poder é exercido e que tipos de saberes ele gera. Isso faz pensar nossa ideia inicial que é apenas no conflito que a humanidade funciona, somente no conflito contra o poder é que podemos superar os conflitos e conhecer a verdadeira natureza humana.

As relações de poder, para Foucault (1999) não são percebidas pela repressão em si, mas pela produção de ideologia e discursos. O Estado com seus mecanismos de controle não fazem muito reprimir, embora o faça amiúde, estão mais preocupados em divulgar seu saber, utilizando de uma maquina informativa para tanto, expandindo o saber aceito pelos feixes de poder na sociedade do discurso que vai absorvendo esse discurso. Quando a sociedade aceita um discurso reprimido ainda que não verdadeiro, aí sim ocorre a repressão, assumindo o discurso dominante as pessoas concordam que deve-se trancafiar adolescentes infratores, que se deve coibir união de pessoas do mesmo sexo, o discurso dominante já proibiu o casamento interracial, o divórcio e a independência financeira da mulher.

Ao produzir ideologia e discurso através de palavras e atos e ao circular esse saber é o que constitui, consolida e garante os feixes de poder dominantes. Foucault (1999) o eterno denunciante, acusa a forma de como esse saber se esconde, através do código jurídico, que a força legitima as formas de controle do discurso, seja através de cobrança de direitos autorais[6] ou através do financiamento excludente de ciência. Outra forma de camuflagem é a disciplina, que organiza e difunde a ordem discursiva pelos indivíduos tornando-os dóceis e úteis, elementos fundamentais para a constituição do sujeito do discurso.

Foucault (1990) estuda o poder nas penitenciárias e já tendo estudado nos hospícios, de como o poder se exerce através da legalidade e do Estado. Através do panopticon e da eterna vigilância que a força de trabalho e do corpo, com o mínimo de esforço é transformada em força dócil e útil. Para esse autor a prisão é um sistema que serve como laboratório do feixe do poder, isso porque a observação afeta o sujeito alterando seus comportamentos.

Os hospitais psiquiátricos são outra forma de estudo de como o poder funciona. Tudo aquilo que é diferente, é subjugado pelo poder. Todo aquele que é tido como diferente não vai ser aceito pela ordem do discurso, sendo de algum modo oprimido ou encarcerado. Isso acontece com os ditos loucos, acontece com os homossexuais, com todos aqueles que protestam, e são chamados de vândalos[7] ou criminosos, ou não são aceitos pelo poder. Assim o estado através da produção de conhecimento vulgariza e tenta controlar a alteridade, aquilo que nos faz diversos e preciosos.

6-A dissociação

Essa diferença ou dissociação faz aquilo que não se padroniza, faz a riqueza da humanidade que o Estado tenta tirar e jogar a uma padronização. Claro que cada pessoa, cada agente social tem sua própria alteridade e seu próprio jeito de ser e agir no mundo social. Bourdieu vai estabelecer os gostos, às preferências na vida cultural que cada indivíduo carrega consigo. Ele denuncia que cada pessoa vai se pertencer a uma estrutura sócio-cognitiva e as diferenciações vão se estabelecer de acordo com o capital cultural que cada pessoa pôde ter ao longo de sua historia pessoal e cultural. A cultura oferece o que cada pessoa pode captar a depender de sua capacidade socioeconômica e histórica que vai ou não acumular/expressar seu capital cultural. Isso depende de uma serie de fatores complexos como educação, estrutura econômica e familiar além de outros vários que demandariam um estudo a parte.

Ocorre que as preferências culturais dos agentes sociais serão estruturadas conforme as vicissitudes de sua condição cultural que se aprende desde a escola e das condições dessa escola até a herança familiar. Pessoas que tiveram acesso às boas escolas e tiveram a capacidade econômica para frequentá-las, moldadas por famílias que tinham acesso a capitais culturais como livros, acesso aos cursos de mercado cultural como línguas e artes vão ter um certo acúmulo de capital cultural. Nesse capital cultural são transmitidos impositivamente valores. Essas mesmas pessoas vão ter mais chances de fazer parte dos altos escalões do poder econômico e político.

Claro que essas pessoas e situação de poder vão proteger os valores para elas passados por seu capital cultural. As pessoas vão incorporando seus Habitus, ou suas disposições de agir, sentir, pensar, fazer, ou seja, o seu conjunto de disposições para ação, ou melhor, é uma ?competência prática adquirida na e para a ação?(BOURDIEU, 1989, p. 65). As pessoas vão agir e pensar conforme seu habitus. Evidentemente o poder funciona com pessoas e quem está na liderança desse poder vai tentar impor ou pensar sua própria noção de valores, e impor aos seus subordinados tal noção.

No Estado burguês quem está no poder vai proteger seus valores burgueses a quais sejam o gozo da boa vida, o fetiche da mercadoria e a necessidade da desigualdade social e da exploração para manter o lucro. Vai haver uma imposição de valores das pessoas que estão no poder, Isso já foi denunciado por Foucault. A estrutura invisível do poder assim se faz, através de toda uma maquina propagandística e de imposição de valores. Claro que o Estado protege esses valores como no exemplo da propriedade privada, ainda que seja em conflito com outros valores como o direito a alimentação ou a moradia. Além disso, impõe certos padrões de comportamentos e valores através das estruturas comunicantes, e os valores de quem está no poder vão sendo passado para os todos os outros. Assim com a proteção jurídica do Estado esse poder extrapola seus limites influenciando a alteridade das pessoas.

Na ciência, tida como verdade também se impõe valores. Bourdieu vai possibilitar uma inovação do pensamento afirmando que o laboratório cientifico é um campo social, e não isolado da sociedade como queriam os nobres cânones da verdade pura. O cientista, no pensamento moderno não fica numa torre de cristal isolado da sociedade, não há distanciamento cientifico possível já havia dito Weber e depois com mais propriedade o próprio Bourdieu. Para Bourdieu, uma ciência neutra é "uma ficção interessada que habilita seus autores a apresentar uma representação do mundo social, neutro e eufêmico (...)" (Bourdieu, 2004, p.41).

Para Bourdieu o campo científico não tem qualquer desconexão com o campo político e econômico. A política a economia e a ciência são feitas e comandadas por agentes humanos, e não é possível ser humano sem outros seres humanos que inculcam os seus habitus e noção de valores. Quem está na condição de poder vai realmente determinar o que será produzido em ciência, pois não vai deixar de seguir uma noção de valores.

O mercado produz ciência e tecnologia de modo assombroso, pois fincia a tecnologia a ser usada. Ele quem cria novos meios de ver televisão, novos motores de carros, transportes mais rápidos etc... tudo feito com ciência e nada tão nobre como a descoberta da pura verdade científica, mas sim para atender ao mercado. Marx já denunciava esse fato:

Com a produção fundada no capital, pela primeira vez a natureza se torna puramente um objeto para a humanidade, puramente uma questão de utilidade; ela deixa de ser reconhecida como um poder em si mesma; e a descoberta teórica de suas leis (cientificas) autônomas aparece meramente como um estratagema para subjugá-la às necessidades humanas, quer como objeto de consumo, quer como meio de produção (Marx, 2011, p. 361). (Parênteses nossos)

No caso do Estado, a ciência em particular torna-se particularmente suscetível ao que será produzido, pois é o poder que organiza e financia a maioria das pesquisas científicas e essa vai ser produzida conforme os interesses do Estado. Capra (1992) já acusava sobre a pesquisa em computação e inteligência artificial feita pelo pentágono (órgão de defesa militar máximo) dos EUA será desenvolvida muito rápido dada o seu financiamento de Seiscentos milhões de dólares ao ano, e tal pesquisa não tem haver com nenhum beneficio que a humanidade possa ter, seu objetivo é um só: a guerra. É fato notório, outro exemplo, no Brasil, qualquer professor universitário sabe, que abundam bolsas e financiamentos para pesquisa em zootecnia, agricultura e biocombustíveis e falta em filosofia e ciências sociais que seriam ciências que de fato poderiam despertar uma conscientização na sociedade, no Brasil a ciência é feita de acordo com o interesse do Estado.

O mercado e o Estado são configurações de poder, que vão sendo estruturadas por habitus das pessoas que estão no poder. De modo irônico, o polemico cientista responsável pelo projeto genoma humano fala da submissão da ciência ao poder em especial das patentes e financiamentos públicos e privados:

Assegurar patentes e envolver-se com coberturas da mídia são partes da ciência moderna de que não se pode escapar, uma ciência que o reconhecimento institucional e o financiamento são cada vez mais importantes. Não há como voltarmos atrás no tempo até alguma era de ouro mítica em que os cientistas eram verdadeiros cavalheiros (COLLINS; PINCH, 2003, p. 114).

Assim conclui-se que a ciência é submissa ao poder. Porém há um problema. A ciência é tida na pós-modernidade como fonte única de verdade. Assim a verdade então começa a ser submetida ao poder. Ele vai determinar ou não os modos de pensar e de ser.

Como dizia Foucault o saber e a ciência vai passar por uma ideologia, e tal ideologia é o pensamento dominante e isso tem consequências:

A influência da ideologia sobre o discurso científico e o funcionamento ideológico das ciências não se articulam no nível de sua estrutura ideal (mesmo que nele possam traduzir-se de uma forma mais ou menos visível), nem no nível de sua utilização técnica em uma sociedade (se bem que esta possa aí entrar em vigor), nem no nível da consciência dos sujeitos que a constroem; articulam-se onde a ciência se destaca sobre o saber. Se a questão da ideologia pode ser proposta à ciência, é na medida em que esta, sem se identificar com o saber, mas sem apagá-lo ou excluí-lo, nele se localiza, estrutura alguns de seus objetos, sistematiza algumas de suas enunciações, formaliza alguns de seus conceitos e de suas estratégias (2008, p.207).

Assim a ideologia dominante com a proteção do Estado vai impor o saber, e ao impor o saber vai impor o querer e ao impor o querer vai lucrar com isso. A ciência é feita por e pela burguesia dominante que está na posição de capital cultural de impor seu pensamento aos outros e conta com o instrumental para tanto.

Assim as pessoas, as diferenças e alteridade vão sendo construída através de uma pratica discursiva da lógica dominante a qual não há facial escapatória.

Apenas mudando a prática discursiva através da revolução ou conscientização, da luta e da resistência é que se pode sair mudar o discurso, pois no final o discurso só e a reprodução daquilo que pensamos, diz o sábio Jesus ?porque a boca fala do que o coração está cheio.? (BÍBLIA, Evangelho segundo Lucas 6:45). Assim assumimos e agimos conforme aquilo que pensamos e ainda pensamos o que nos é imposto por quem tem os instrumentais da pratica discursiva, de quem produz o saber e a verdade, tudo protegido pelo Estado.

Mas a luta pela diferença de pensar e de agir, fazer a diferença, agir diferente do que nos é imposto; é a condição para melhorar o mundo, este só vai permanecer em boas ou más condições conforme as pessoas que fazem parte dele. A alteridade, essa relação em que o outro é pensado e se deve agir conforme a existência do outro. Na alteridade percebemos que outros estão fora das condições mínimas da humanidade, como falta de acesso a comida e justiças básicas. Quem está no poder até agora não pensou no outro, não existe até agora uma verdade, ou uma ciência que pense no outro salvo talvez a proposta por Latour. O Estado e a ciência precisa pensar no outro, mas são as pessoas que fazem as práticas discursivas e precisamos mudar o sistema atual. Resistamos, lutemos, só mudando nossos valores impostos vamos pensar no outro. Como? Fica para uma outra obra.

Referências:

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CAPRA, F. O ponto de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo, Cultrix, 1992.

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Notas

[1] Sociólogo, historiador e mestre em filosofia pela UNESP, doutorando em ciências da religião pela UMESP, doutor em Ciências Sociais pela UNESP. Advogado atuante em direitos humanos formado pela ITE OAB/SP314.525, é professor do IFSP nas áreas de antropologia e sociologia. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1237323566665797.
[2] A Revolução francesa, um conflito de ideias e do povo contra os absolutismos marca a idade contemporânea, o saque visigodo em Roma marca a passagem da antiguidade para o medievo, e o fim deste é marcada pela guerra dos cem anos. É assim de conflitos que se marca a história.
[3] O leviatã aprece na bíblia no livro de Jó: "Poderias pescar com anzol o leviatã? ou prender sua língua com uma corda? Consegue fazer passar um cordão pelo seu nariz ou atravessar seu queixo com um gancho? Pensa que ele vai lhe implorar misericórdia e lhe vai falar palavras amáveis? Acha que ele vai fazer acordo com você, para que você o tenha como escravo pelo resto da vida? Acaso você consegue fazer dele um bichinho de estimação, como se ele fosse um passarinho, ou pôr-lhe uma coleira para as suas filhas brincarem com ele? Poderão os negociantes vendê-lo? Ou reparti-lo entre os comerciantes? Você consegue encher de arpões o seu couro, e de lanças de pesca a sua cabeça? Se puser a mão nele, a luta ficará em sua memória, e nunca mais você tornará a fazê-lo. Esperar vencê-lo é ilusão; só vê-lo já é assustador. Ninguém é suficientemente corajoso para despertá-lo. Quem então será capaz de resistir a mim? Quem primeiro me deu alguma coisa, que eu lhe deva pagar? Tudo o que há debaixo dos céus me pertence. "Não deixarei de falar de seus membros, de sua força e de seu porte gracioso. Quem consegue arrancar sua capa externa? Quem se aproximaria dele com uma rédea? Quem ousa abrir as portas de sua boca, cercada com seus dentes temíveis? Suas costas possuem fileiras de escudos firmemente unidos; cada um está tão junto do outro que nem o ar passa entre eles; estão tão interligados, que é impossível separá-los. Seu forte sopro atira lampejos de luz; seus olhos são como os raios da alvorada. Tições saem da sua boca; fagulhas de fogo estalam. Das suas narinas sai fumaça como de panela fervente sobre fogueira de juncos. Seu sopro faz o carvão pegar fogo, e da sua boca saltam chamas. Tanta força reside em seu pescoço que o terror vai adiante dele. As dobras da sua carne são fortemente unidas; são tão firmes que não se movem. Seu peito é duro como pedra, rijo como a pedra inferior do moinho. Quando ele se ergue, os poderosos se apavoram; fogem com medo dos seus golpes. A espada que o atinge não lhe faz nada, nem a lança nem a flecha nem o dardo. Ferro ele trata como palha, e bronze como madeira podre. As flechas não o afugentam, as pedras das fundas são como cisco para ele. O bastão lhe parece fiapo de palha; o brandir da grande lança o faz rir. Seu ventre é como caco denteado, e deixa rastro na lama como o trilho de debulhar. Ele faz as profundezas se agitarem como caldeirão fervente, e revolve o mar como pote de ungüento. Deixa atrás de si um rastro cintilante; como se fossem os cabelos brancos do abismo. Nada na terra se equipara a ele; criatura destemida! Com desdém olha todos os altivos; reina soberano sobre todos os orgulhosos". Jó 41:1-34- BÍBLIA
[4] Esse termo, pós - modernidade, segundo Touraine (1993, p. 37) significa apenas crise da modernidade.
[5] Em 2011, o Prêmio Nobel de Medicina foi entregue ao médico e pesquisador Richard J. Roberts. Em pronunciamento, ele oficializou uma denúncia a respeito da forma como funcionam as grandes indústrias farmacêuticas, que preferem benefícios econômicos em detrimento à saúde, detendo o progresso científico na cura de doenças, já que a cura não é tão rentável quanto a cronicidade das doenças. Fonte: http://revistacorpore.com.br/materias///por-mais-medicina-de-qualidade, acesso em 11/jul/2015.
[6] É simplesmente absurdo que países da África, tenham que pagar absurdos aos laboratórios internacionais para combater o HIV em suas crianças, porque não podem romper com o s direitos de propriedade desses laboratórios, esses laboratórios são localizados nos países centrais e contam com o apoio de seus governos para essa exploração desumana, é um exemplo de como um saber científico é subjugado pelo poder Estatal. Em 2007 o Brasil Rompeu com a patente de medicamento antirretrovirais produzindo a baixo custo e alta qualidade e distribuído gratuitamente à população infectada, Fonte: bvssp.icict.fiocruz.br/lildbi/docsonline/get.php?id=368, acesso em 12/jul/2015, ainda hoje o Brasil enfrenta processo nas cortes de direito internacional para sua posição humanitária.
[7] A palavra vândalo é constantemente usada pelos poderosos para desunir e diminuir aqueles que protestam. Vândalos eram bárbaros, ou seja, eram um povo diferente dos romanos, eram um povo da Germânia da cultura Przeworsk que pensava diferente dos romanos, e lutavam por melhores condições ante os desmandos do império, só porque eram diferentes forma considerados inferiores, outro exemplo de como a ideologia se propaga. .


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