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EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE RACIAL NO CONTEXTO BRASILEIRO: O CONTEXTO DAS LEIS 10639/2003 E 11645/2008
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 15, núm. 1, 2018
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 15, núm. 1, 2018

Recepção: 01 Junho 2018

Aprovação: 30 Junho 2018

Resumo: O objetivo desse texto é refletir sobre os alguns aspectos dos processos que culminaram com a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB Lei 9394/1996), especificamente no seu artigo 26 e a criação dos artigos 26-A e 79b, que introduziram a obrigatoriedade do ensino de histórica e cultura africana, afro-brasileira e indígena na educação básica e insere o Dia da Consciência Negra no calendário escolar. Tais alterações foram empreendidas em 2013 e 2018, a partir das leis 10639 e 11645, as quais tratam dos contextos afro e ameríndio, respectivamente. O argumento central é de que tais modificações resultam da atuação de grupos dos movimentos negro e indígenas, ao longo dos séculos, cujo ápice se dá quando da promulgação da Constituição Federal em 1988. Por fim, se sublinha o papel paradigmático das Ciências Sociais neste contexto.

Palavras-chave: educação e diversidade, racismo, formação de professores, Lei 10639/03.

Palabras clave: educación y diversidad, racismo, formación de profesores, Ley 10639/2003, Ley 11645/2008

Keywords: education and diversity, racism, teacher training, Law 10639/2003, Law 11645/2008

Introdução

Ao retraçar os caminhos da inclusão da temática da diversidade étnica e racial no ensino básico escolar, neste texto, pretende-se refletir sobre os debates e estratégias de agentes da sociedade civil organizada tanto com relação a promulgação quanto a regulamentação dos dispositivos legais que norteiam as políticas públicas educacionais voltadas para a diversidade.

Especificamente o objetivo é refletir sobre os alguns aspectos dos processos que culminaram com a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - Lei 9.394/1996), especificamente no seu artigo 26 e a criação dos artigos 26-A e 79b, que introduziram a obrigatoriedade do ensino de histórica e cultura africana, afro-brasileira e indígena na educação básica e insere o Dia da Consciência Negra no calendário escolar. Tais alterações foram empreendidas em 2013 e 2018, a partir das leis 10639 e 11645, as quais tratam dos contextos afro e ameríndio, respectivamente.

Primeiramente serão tratados os processos de existência e resistência das populações negras e indígenas no Brasil e, em seguida, será assinalado como parte das reivindicações desses grupos foram recepcionados pelos dispositivos legais, especificamente no caso da educação básica. Por fim, destacar-se-á o papel paradigmático da licenciatura em Ciências Sociais na consecução de um projeto político pedagógico atento à diversidade étnica e racial.

Negros e índios no Brasil: processos de (r)existência

Neste exercício reflexivo não se pretende realizar uma revisão exaustiva da atuação de grupos dos movimentos negros e indígenas no Brasil, apenas serão destacados alguns episódios paradigmáticos que nos permitem compreender como o direito à diversidade étnica e racial na educação resulta de um processo de luta que se desenvolve na longa duração e como o consórcio de muitos atores. Para tanto, será tomado como base as ações empreendidas por alguns sujeitos a partir da virada do século XIX para o XX.

Definição de uma identidade cultural nacional

Na virada do século XIX para o XX, intelectuais, políticos e artistas empreendem um conjunto de ações no sentido de definir a ?identidade nacional?, isto é, estabelecer o que significa ?ser brasileiro?. De fato, o exercício não era inédito, pois desde a proclamação da independência em 1822, e sobretudo durante o reinado de Dom Pedro II, buscou-se constituir nos trópicos uma metrópole (SCHWARCZ, 1998).

Durante o Romantismo, a figura do indígena foi acionada como forma de estabelecer certa harmonia nacional e valorizar os ?povos originários? como artífices na constituição do Brasil. Destaca-se, nesse período, os romances de Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães, Teixeira e Souza, Araújo Porto-Alegre e José de Alencar donde pode-se entrever certo nacionalismo e a figura do indígena como altivo, valoroso e corajoso. (SILVA, 2005).

Essas concepções, entretanto, não resistiram as interpretações do evolucionismo social[3] que dominou os séculos XVIII e XIX e colocava num plano inferior ao europeu as sociedades ameríndias e africanas, as quais compunham a maioria da população brasileira. Essa perspectiva racial e hierárquica impactou também na percepção sobre a mestiçagem e a noção de sincretismo, como uma ameaça ao desenvolvimento da nação. (SCHWARCZ, 1993). Não foram poucas as advertências sobre os perigos da mestiçagem e a necessidade do branqueamento da população brasileira.

Na medida em que a visão evolucionista perde credibilidade como explicação científica, a mestiçagem começa a ser positivada. Colabora decisivamente nesse processo o Movimento Modernista Brasileiro cujo ápice se dá na Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo em 1922. Assim, é emblemático o romance Macunaíma de Oswald de Andrade (publicado em 1928), em que a personagem principal é uma síntese da brasilidade imaginada: um sujeito hibrido, que materializa no corpo e nas atitudes as contradições e influências europeias, africanas e ameríndias.

Ainda no campo artístico e cultural, as Missões de Pesquisas Folclóricas organizadas pelo escritor paulista Mário de Andrade, então Secretário Municipal de Cultura da cidade de São Paulo, foram importantes no processo de valorização das expressões culturais e religiosas no interior do país, sendo que, para o registro das manifestações de origens africanas (como os candomblés) era necessário obter autorização prévia das autoridades policiais (SILVA, 2013). Ou seja, ?por um lado o Estado reconhecia a importância de tais expressões (sobretudo como constitutivo da brasilidade) e, por outro, os repreendia como danosos à essa mesma cultura nacional? (OLIVEIRA, 2017, p. 34).

Esse movimento, encontrou ressonância também nas ações políticas do governo de Getúlio Vargas. E, no afã de inventariar os ?símbolos da identidade nacional?, os contextos afro-brasileiros forneceram o repertório privilegiado para constituição da brasilidade. Samba, feijoada, capoeira, saem do universo afro-religioso para se tornarem ?símbolos nacionais?.

No campo das Ciências Sociais, o esforço dos analistas em positivar a mestiçagem permitiu a fusão, no plano teórico, das identidades culturais e nacionais: De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz:

para os europeus, a identidade nacional une entre si coletividades culturais que podem ter patrimônios culturais muito diversos; a união é essencialmente política e se faz através de sentimentos comuns de adesão e de devotamento a uma sociedade global. Para os brasileiros, as duas concepções, de identidade cultural e de identidade nacional, se confundem, em sua nação, todas as coletividades étnicas, todos os estratos sociais estão interligados por um patrimônio cultural semelhante e este fato compõe o nacional, ? algo que se exprime de forma concreta, independentemente de uma conscientização. Os elementos culturais são basicamente os mesmos; a variação que existe é do grau em que cada complexo pesa num ou noutro estrato, numa ou noutra etnia. (QUEIROS, 1989, p. 28).

Se do ponto de vista desses intelectuais que estão pensando o Brasil no início do século passado, as identidades nacionais e culturais se interpenetram de tal modo que podem ser consideradas como sinônimas e considerando que a maioria dos símbolos acionados como sinais diacríticos da ?brasilidade? foram ?inventariados? no universo afro-religioso, convém destacar que esse movimento não impediu que as religiões afro-brasileiras e seus adeptos fossem perseguidos tanto pelo Estado quanto por outras instituições religiosas, por um lado, nem que a população negra fosse incluída no programa desenvolvimentista nacional. (OLIVEIRA, 2017, p. 22).

O combate à discriminação racial

Tem-se, no início do século XX, uma situação emblemática para o negro brasileiro: positiva-se certos elementos das chamadas heranças africanas no Brasil (alçadas à ?símbolos nacionais?), sem que seus produtores fossem também positivados, persistindo, portanto, as situações de desigualdades entre negro e brancos.

Nesse contexto social surge a Frente Negra Brasileira (FNB)[4], ?calcada nos valores vigentes de ascensão social, acreditando que o negro venceria à medida que conseguisse firmar-se nos diversos níveis das ciências, das artes e da literatura? (MOURA, 1983, p. 156). Desse modo, suas ações preconizavam, por um lado, o afastamento dos elementos identificados como africanos (vistos na época como sinal de atraso e inferioridade, graças a influência de certos aspectos do evolucionismo social ainda vigentes no cenário científico nacional) e a defesa de uma educação pública que incluísse à população negra.

Apesar de certo acento depreciativo às manifestações culturais de origem africana, a FNB tinha como objetivo principal o combate ao racismo e à discriminação e a superação das desigualdades sociais entre negros e brancos. Suas ações influenciaram outros ativistas e paulatinamente a perspectiva de rejeição aos símbolos afro cede ao movimento de valorização da africanidade. Ou seja, superado o evolucionismo social como grade científica explicativa da diversidade sociocultural entre os grupos, no processo de valorização do negro no contexto nacional passa pela positivação de seus aspectos culturais de origem africana.

Ganha destaque nesse contexto de ?positivação das matrizes africana?, o trabalho do artista plástico e ativista Abdias do Nascimento[5], um dos precursores do Movimento Quilombismo, permitindo a reverberação do Pan-africanismo[6] no contexto nacional. A atuação de Abdias, enquanto senador constituinte em 1946, foi paradigmática para a articulação da população negra na defesa de seus interesses.

Nota-se, na primeira metade do século XX, um embate na arena pública, contra o racismo e a discriminação da população negra, até então invisibilizada do ponto de vista jurídico pelo mito da democracia racial. A ação de ativistas dos movimentos negros culmina com a promulgação da lei Afonso Arinos (Lei 1.390/1951) que incluiu o preconceito entre as contravenções penais. Somente em 1989, com a Lei Caó (Lei 7.716/1989), o racismo passa a ser considerado crime no Brasil, possibilidade aberta pela Constituição de 1988.

A partir da década de 1960 e 1970 com o acirramento das disputas no campo da política (sobretudo no contexto da ditadura militar), os movimentos negros empreenderam uma série de ações no combate ao racismo e à discriminação. Ações de cunho político, artístico, cultural e religioso foram organizados em todo território nacional (OLIVEIRA, 2017). E, em 1978, funda-se em São Paulo, o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNU), o qual tinha por objetivo principal centralizar as ações de combate ao racismo e a defesa dos direitos da população negra, embora não apagasse as idiossincrasias internas de seus vários organismos associados (IANNI, 2005).

As ações do MNU, possibilitaram a inclusão na Constituição Federal de 1988 de alguns artigos que permitiram a formulação de políticas públicas voltadas para a população negra, como a classificação do racismo como crime (artigo 3 e 5), a possibilidade de titulação dos territórios dos remanescentes dos quilombos (artigo 68 dos Atos e Disposições Transitórias).

A luta da população indígena no Brasil

Desde a chegada dos portugueses, em 1500, as populações indígenas têm vivenciado inúmeros processos de resistências e enfrentamentos. Tais ações assumem especificidades de acordo com o contexto histórico-social e os grupos implicados na manutenção de seus direito e frente as diversas faces da colonização.

Ao tratar do caráter educativo do movimento indígena brasileiro, Daniel Munduruku (2012) retraça de modo sintético e analisa alguns aspectos paradigmáticos das relações entre os índios os brancos de origem europeia, os quais classifica como períodos exterminacionista, integracionista, a refundação da Funai e a reabertura democrática pós 1988. Em cada um desses períodos, é possível entrever modos distintos de resistências e enfrentamentos.

No que concerne ao período classificado como exterminacionista, Munduruku (2012, p. 30) destaca que ?centenas de povos e milhares de pessoas sucumbiram ao emprego da violência física e cultural: o genocídio concretizado pela escravidão, pelas doenças estranhas, pela ganância homicida dos apresadores de índios, aliado ao etnocídio promovido pela Igreja, por meio da catequese, em sua política de proibição, demonização e inferiorização das culturas indígenas? (2012, p. 30).

Pautado em certo entendimento evolucionista das culturas, o período caracterizado como integracionista¸ desenvolvido sobretudo durante o período republicano e norteado por valores positivista, tinha o índio como um sujeito que precisa ser tutelado. De acordo com Darcy Ribeiro (2004), mesmo que a participação desta população tenha sido decisiva no processo de ocupação das regiões centro-oeste e norte do país, por meio de abertura de ferrovias, rodovias, implementação de áreas de cultivo agropastoril e extração de riquezas vegetal e mineral, nos primeiros vinte anos da república, não foram empreendidas ações efetivas em favor dos indígenas, pelo contrário, acentuou-se ações que dificultavam a produção e reprodução à seus modos de vida.

Em 1910, após muitos conflitos e atuação efetiva dos coletivos indígenas, é criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que estabeleceu o processo de institucionalização de políticas públicas para os índios. A pesar de se seus equívocos, ?dentre as diretrizes que norteavam o SPI, destacam-se o respeito aos povos indígenas, aos seus direitos de identidade e diversidade cultural? (MUNDURUKU, 2012, p.25). Com relação ao aspecto cultural, acreditava-se que ele poderia ser modificado para inserir esses coletivos na comunhão nacional.

A crescente crítica aos trabalhos do SPI (tanto por parte da imprensa, quanto de militares e setores do governo) ligado a transformações no posicionamento de intelectuais frente as políticas indigenistas, levaram a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em substituição ao antigo órgão governamental.

Sob o regime militar, que vigorou de 1964 a 1985, coube a FUNAI exercer a tutela dos indígenas e pautar as ações de integração desta população com a sociedade nacional. Com a atuação cada vez mais crescente dos coletivos indígenas, sobretudo a partir da década de 1970, superou-se o modelo integracionista protagonizado nesta instituição. (MUNDURUKU, 2012).

Com a promulgação da CF 1988 o movimento indígena também consegue importantes vitórias, como o direito coletivo aos seus territórios (Artigo 231), o uso das línguas maternas na educação básica das populações indígenas (Artigo 210) e ainda a valorização das expressões culturais ameríndias e afro-brasileiras (Artigo 215).

Os contextos das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

Partimos do suposto de que as transformações culturais observadas na sociedade mais ampla possuem ressonância nos contextos escolares, seja diretamente na reformulação dos currículos, da organização do sistema de ensino, nos conteúdos ou métodos didáticos e, ainda, nas relações entre educandos, educadores e os demais agentes implicados no processo de ensino e aprendizagem. De fato, por meio da intervenção direta nos dispositivos legais que regem a educação formal estabelece-se mais do que modos de ensinar e aprender, produz-se os sujeitos que darão forma aos valores preconizados no ideário sobre a nação. Dito de outro modo, ao imaginar uma sociedade por meio da promulgação de uma Constituição, os legisladores estabelecem os princípios que nortearão as ações necessárias para a materialização desse projeto. Nesse contexto, as leis infraconstitucionais devem, a todo momento, entrever esse ?espírito cidadão?.

Desde a proclamação da independência, em 1822, o Brasil teve oito constituições: uma durante o império (1824) e sete no período republicano, a saber: 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988. Marcadas por golpes e contragolpes (SILVA, 2013), somente nas edições de 1891, 1934 e 1988 contou-se, entre os constituintes, com representantes populares, com destaque para a edição de 1988, a ?Constituição Cidadã?.

Os contextos políticos, sociais e econômicos nos ajudam a compreender o modo pelo qual se deram a participação do povo (por meio de delegações) e certa preocupação em incorporar no texto legal a pluralidade de anseios da população.

No caso específico da educação no território nacional, ?as constituições brasileiras foram incorporando, ao longo do tempo, conquistas tênues dentro de um ritmo historicamente lento, como, de resto, foi todo o processo brasileiro de aproximação entre direitos políticos e direitos sociais? (CARNEIRO, 2015, p. 28). Ou seja, numa sociedade marcada pela desigualdade (de classe, raça e gênero), são as lutas sociais empreendidas por atores da sociedade civil organizada que impõem as transformações que são recepcionadas, em parte, pelo texto legal.

A Lei da Educação deve trazer certeza e ordem de um lado e, de outro, deve ser mediadora entre as imposições da estabilidade e as exigências da evolução social. Mas deve, sobretudo, ser um roteiro seguro de conceitos, caminhos, condutas e conclusões sob a inspiração da constituição (CARNEIRO, 2015, p. 27)

A Constituição de 1946 ?preceituou uma organização equilibrada do sistema educacional brasileiro, mediante um formato administrativo e pedagógico descentralizado, sem que a União abdicasse da responsabilidade de apresentar as linhas mestras de organização da educação nacional ? (CARNEIRO, 2015, p. 32).

A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada somente em 1961 sob o número 4.024/61, possui um caráter normativo e não acenava enfaticamente para a adoção de medidas de inclusão da diversidade étnica ou racial. De fato, a preocupação estava em estruturar com clareza a educação nacional e permitir o acesso ao ensino superior. Durante o período miliar são editadas duas leis educacionais: em 1968 (Lei 5.540) com um acento marcadamente autoritário e em 1971 (Lei 5.692), cujo acento está numa educação tecnicista voltada para a formação para atuação no mercado de trabalho.

Com a promulgação da Constituição Federal em 1988, gesta-se também a necessidade de uma nova LDB, que respondesse aos novos princípios democráticos estabelecidos na Carta Magma. Promulgada somente em 1996, sob o número 9.394, de acordo com Moaci Carneiro, o longo período de tramitação da LDB leva a quatro constatações, dentre as quais destacamos:

i) a educação é um campo estratégico de lutas políticas entre forças de permanência e mudança. Para as primeiras, a educação é um ?produto?, para as segundas, um ?processo?. [...] iv) a mobilização da sociedade civil organizada constitui empuxe fundamental para remover tentativas de descaminhos do Estado e de desvios do Poder Político [...] Pode-se dizer que este conjunto de forças e iniciativas de mobilização política contribuíram significativamente para conter o alargamento de deformações no texto em curso legislativo e, assim, para desenhar um campo normativo-educacional mais consentâneo com a realidade democrática do país. (CARNEIRO, 2015, 42).

Considerações finais: educação, diversidade e a formação de professores

Uma vez que a educação não está apartada do contexto social e constitui um meio importante para a superação das desigualdades sociais (SANTOS, 2009, p. 81) a luta pelo fim de todas as formas de discriminação não está apartada destes objetivos.

Tal como apontamos acima, especialmente a partir da atuação da Frente Negra Brasileira, ficou evidente que a discriminação étnica e racial observadas no contexto brasileiro, também está presente no interior da escola: no conteúdo do livro didático, em ações pedagógicas que promovem outras formas de ensinar e aprender além daquelas de origem europeia ou a inferiorização das matrizes africanas e ameríndias presentes no cenário nacional. (SILVA, 1995).

O debate em torno da inclusão do estudo da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena na educação básica, embora tenha ganhado corpo nos anos 1970 e 1980, sendo concretizado com as alterações na LDB em 2003 (Lei 10639) e 2008 (Lei 11645), a luta por uma educação inclusiva e não discriminatória possui longa duração. Nesse sentido, se entende que os dispositivos legais são sínteses das controvérsias públicas em torno de temas que tocam profundamente os diversos grupos que compõe a sociedade, os quais disputam entre si pela capacidade em estabelecer as diretrizes mais legítimas, isto é, a imposição de uma vontade política sobre outra.

A partir da promulgação da Constituição Federal, em 1988, intensificou-se as ações em torno da construção de políticas públicas de recorte étnico-racial voltados para a população negra e indígena, cujo impacto fez-se sentir na Educação: a defesa de instituições escolares que considerassem as especificidades indígenas e quilombolas; o combate à discriminação no contexto escolar, políticas de acesso e permanência no ensino superior etc.

Com a publicação da lei 10639/2003, um novo paradigma fora instituído no contexto da educação nacional, pois a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica impulsionou um conjunto de agentes (políticos, educadores, pesquisadores e a sociedade) a voltar-se atentamente para determinados elementos até então invisíveis: a presença negra na escola.

Um grande movimento revisionário fora empreendido: produção de material didático e desenvolvimento de novas tecnologias de ensino, formação de professores, reformulação das grades curriculares dos cursos de licenciatura e de pedagogia, criação de grupos, núcleos e laboratórios de pesquisa e a produção sistemática de análises que interseccionam educação e relações étnico-raciais (teses, dissertações, livros e artigos científicos).

Essas medidas, foram em parte analisadas, por meio de alguns trabalhos que se propuseram evidenciar o ?estado da arte? em torno dessas questões. Dentre estes, destacamos a coletânea organizada por Luciana Jaccoud (2009) que reuniu um conjunto de pesquisadores para refletir sobre as políticas de promoção da igualdade racial desenvolvidas no Brasil, nos vinte anos anteriores. Embora, o foco não fosse exclusivamente o campo educacional dois dos cinco capítulos foram dedicados à temática.

Pensando diretamente o universo da educação os trabalhos de ANDRÉ & ROMANOWSKI (1999), realizaram uma pesquisa afim de verificar o estado da arte sobre formação de professores nas dissertações e teses dos Programas de Pós-Graduação das Universidades Brasileiras entre os anos 1990 a 1996. No mesmo sentido, mas ampliando o campo empírico de observação (incluindo artigos científicos publicados em revistas indexadas) Paula & Guimarães (2014) mapearam o debate ocorrido no campo científico em torno da aplicação da Lei 10.639 dez anos após sua promulgação. As autoras concluíram que:

As pesquisas apontam para uma invisibilidade do tema nos anos anteriores à década que começa no ano 2000. A investigação a respeito do estado da arte nas pesquisas sobre formação de professores, realizadas nos anos de 1980 e 1990, não evidencia essa temática. O tema não é visível

até década de 1990 para as instituições de educação e pesquisa, em especial aquelas votadas para a formação dos professores para a educação básica e para o ensino superior; na década de 2000, torna-se um dos temas com crescente demanda e inserção no campo da pesquisa, do ensino e da extensão. A formação dos professores ganhou destaque e relevância social no campo da pesquisa científica em educação e nas áreas afins, e a formação continuada dos professores é o subtema que mais aparece e é demandado. Outra constatação é a diversidade de problemas das investigações acerca da temática: a identidade do professor, os saberes, a religiosidade, as práticas pedagógicas, os currículos e o arcabouço legal. Em relação ao professor e a sua formação, evidencia-se a problemática da identidade docente como algo dinâmico. Nesse sentido, categorias analíticas podem ser realçadas, tais como: concepções, saberes, representações, imaginário, trajetórias, aprendizagem, mudanças e permanências e impactos sobre a educação e sistemas de ensino. (PAULA & GUIMARÃES, 2013, p. 445)

Se levarmos a sério a proposição de que os dispositivos legais são sínteses de consensos, do ponto de vista jurídico, de disputas ocorridas nos campos da política e do direito, seguindo a inspiração foucaultiana, nossa hipótese é a de que tais dispositivos também produzem novos arranjos no campo em que pretende normatizar, produzindo novos dissensos.

Dito de outro modo, nossa hipótese é que as alterações introduzidas na LDB, por meio das leis 10639/2003 e 11645/2008, ao mesmo tempo que produziram consensos sobre a necessidade de se incluir na formação básica nacional a contribuição africana e ameríndia na construção da sociedade brasileira, também produziu dissensos tanto na forma quanto no conteúdo daquilo que deveria ser entendido como ?cultura e história africana, afro-brasileira e ameríndia?, como deve ser ensinado e, por extensão, como capacitar os educadores para desempenharem essa incumbência.

Passados 15 anos da promulgação da lei de 10649 e 10 anos da lei 11645, percebemos que muitos avanços foram realizados no tocante a produção de material didático, teses e dissertações e linhas de pesquisa e ainda na oferta de cursos extracurriculares de formação de professores. Entretanto, percebemos que há ainda um longo caminho a ser feito nos cursos de pedagogia e licenciatura. A formação dos formadores precisa ser revista e, neste contexto, faz-se necessário o investimento urgente nos cursos de licenciaturas para que a temática da diversidade (abrangendo os marcadores sociais da diferença: gênero, geração, raça, etnia, classe, religião etc.) sejam abordados com propriedade.

Nesse cenário, a Ciências Sociais tem um papel fundamental. Embora, de modo quase automático, tendemos a atribuir às disciplinas de História, Português e Artes a incumbência em tratar das questões afro e indígenas, é preciso considera que é no interior das Ciências Sociais de modo mais amplo, e no Antropologia especificamente, que o tema da diversidade se coloca como problema epistemológico e o Outro é o sujeito privilegiado de estudos. Portanto, investir nos cursos de licenciatura em Ciências Sociais, contribui significativamente para a promoção de uma educação justa, inclusiva e diversa, tal como preconiza a Constituição Federal. Dito de outro modo, a Antropologia, Sociologia, e Ciência Política, por meio de nossas pesquisas e abordagens teóricas e metodológicas, tem muito a contribuir tanto na formação de professores, quanto na atuação direta na Educação Básica. Soma-se, portanto, positivamente as outras áreas de investigação no processo de efetivação de uma educação pública, gratuita e de qualidade como um direito coletivo dos cidadãos e dever do Estado.

Finalmente, para além dos achados de Paula & Guimarães (2014), chamamos a atenção para a necessidade de investimento em pesquisas voltadas para análise dos impactos produzidos nas instituições de ensino superior (IES), no Brasil, a partir da alteração da LDB. Exercício que iniciamos neste momento, mas que carece ainda de maiores aprofundamentos.

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SILVA, João Carlos Jarochinski. Análise histórica das Constituições brasileiras. Ponto-e-Vírgula: Revista de Ciências Sociais, [S.l.], n. 10, mar. 2013. ISSN 1982-4807.

SILVA, Vagner Gonçalves. "Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais: uma análise simbólica". Revista USP, 67:150-175. 2005

_____. Exu Brasil: o senhor de muitos nomes. São Paulo: Universidade de São Paulo, Tese de Livre docência, 2013.

TEIXEIRA, Jacqueline Moraes. A conduta universal: O governo de si e as políticas de gênero na Igreja Universal. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2017. (Tese de doutorado).

Notas

[1] Versão prelimitar deste texto foi apresentado no V Encontro das Ciências Sociais no Norte de Minas, realizado na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), de 24 a 27 de julho de 2018. Agradeço as contribuições recebidas.
[2] Universidade de São Paulo. E-mail: rosenilton.oliveira@usp.br.
[3] Sobre os impactos das teorias raciais deterministas e evolucionistas na sociedade brasileira ver SCHWARCZ, 1993).
[4] ?Associação de caráter socioeducacional e político que reenvidava um novo padrão de cidadania para os negros brasileiros, reunindo mais de 20 mil associados em todo Brasil?. (SANTOS, 2009, p. 53)
[5] Sobre a trajetória de Abdias Nascimento ver Nascimento (2014).
[6] ?O pan-africanismo surgiu no final do século XIX e reúne o conjunto de reinvindicações, sobretudo as originárias do negros norte-americanos? (SANTOS, 2009, p. 57).


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