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NOTAS SORE ?O MERCADO EM WEBER?: ESPAÇO DE PODER E DOMINAÇÃO
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 15, núm. 1, 2018
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 15, núm. 1, 2018

Recepção: 05 Março 2018

Aprovação: 09 Junho 2018

Resumo: O presente texto tem como objeto central de análise O mercado, tomando como referência fundamental o capítulo sexto do livro Economia e Sociedade de Max Weber. A perspectiva adotada é a de que o mercado é, por excelência, um espaço permeado por relações de poder e dominação e, ademais, marcado pela presença decisiva do dinheiro. Assim, constitui-se em algo que se distancia bastante da perspectiva dominante à época da publicação de Economia e Sociedade e por longo período na teoria econômica, segundo a qual o mercado é uma instituição natural e eterna do mundo dos homens, caracterizada por relações simétricas entre distintos agentes econômicos. A compreensão é a de que, embora a troca se constitua no poder exercido, por excelência, de forma não violenta, enquanto espaço de exercício de poder, não descarta a possibilidade da utilização de recursos extremos de violência como suporte ao processo de enriquecimento e de dominação.

Palavras-chave: Mercado, Economia, Sociedade, Ação Social, Poder.

Abstract: The present paper has as central analysis object The Market, taking as fundamental reference the sixth chapter of Max Weber?s book Economy and Society. The chosen perspective is that market is, par excellence, a space permeated by power and domination relations and, beyond, marked by the decisive presence of money. So, it constituted itself in something which moves far away from the dominant perspective at the time that Economy and Society was publicated, and for a long period in economic theory, according to the market is a natural and eternal institution in men world, characterized by symmetrical relations between distinct economic agents. The comprehension is that, although exchange constitutes itself in the exercised power, par excellence, in non-violent ways, as space of power exercise, it does not discharge the possible use of violence as extreme resource as bearing to enrichment and domination processes.

Keywords: Market, Economy, Society, Social Action, Power.

Introdução

Objetiva-se neste trabalho empreender uma discussão sobre O mercado segundo uma perspectiva weberiana. A instigação à realização desse esforço de interpretação foi provocada pela leitura do capítulo sexto do livro Economia e Sociedadede Weber, de leitura bastante complexa, sobretudo em função do seu caráter inacabado. O trabalho encontra-se estruturado em três partes, sendo a primeira esta Introdução. Na segunda parte, encontram-se discutidos além desse capítulo, com papel central à elaboração do presente texto, como referências primordiais, os capítulos econômicos da citada obra, notadamente os do capítulo 2 da primeira parte, bem como os trabalhos da área da ciência econômica que aparecem mencionados ao longo do artigo. A última parte refere-se às considerações finais alusivas à temática.

O mercado segundo o capítulo sexto de Economia e Sociedade

À época em que Weber escreveu Economia e Sociedade, a ciência econômica tinha claramente uma escola dominante: a neoclássica[3]. O prefixo neo foi incorporado ao termo clássica em decorrência do fato daquela escola haver adotado da Escola Clássica, os princípios de livre empresa, livre mercado e da existência do mercado como algo natural e eterno. No entanto, promoveu uma profunda ruptura metodológica ao abandonar a discussão do valor-trabalho ? que tinha como palco privilegiado a produção - e adotar a teoria do valor-utilidade que privilegia a análise do mercado. Assim, segundo esta concepção, o valor passou a identificar-se ao preço e a discussão foi deslocada para o âmbito da circulação.

O modelo teórico defendido pela escola neoclássica intitulado de concorrência perfeita, constitui-se em uma representação abstrata da economia, baseando-se no pressuposto do homem econômico racional; logo, que vendedores e compradores fundamentam suas ações numa concepção hedonista. Os pressupostos básicos do modelo teórico em pauta são: a) a atomicidade dos agentes econômicos; b) o preço determinado pelo mercado e constituindo-se num dado para a firma tomada individualmente; c) a existência de perfeita informação. Segundo a escola neoclássica, se a realidade se comportasse de acordo com essa visão teórica, o resultado seria uma situação em que os vendedores maximizariam os seus lucros e os consumidores maximizariam as suas utilidades. Logo, do ponto de vista econômico, o resultado seria em âmbito geral, o alcance de uma situação de ? ótimo social?.

No campo da Ciência Econômica, o pensamento neoclássico emergiu como teoria dominante no início do século XX,sobretudo a partir da publicação, em 1890, dos ?Princípios de Economia?, de Alfred Marshall, que empreendeu a chamada primeira síntese neoclássica, a partir de contribuições de autores clássicos e utilitaristas/marginalistas.

Outro elemento a ser considerado para que se busque alguma conexão entre a obra de Weber, objeto deste artigo, e alguns pressupostos neoclássicos, é a própria transformação da sociedade, que sofreu profundas transformações neste período, a partir das experiências de sociedadestais como a russa, a alemã e a francesa, que buscavam reduzir a distância tecnológica, econômica e de poder em face à Grã-Bretanha.

Foi nesse mundo em mutação Weber construiu os primeiros capítulos da obra que viria a ser chamada de ?Economia e Sociedade?, cujos primeiros quatro capítulos foram escritos pelo próprio autor. Entretanto, coube a Marianne Weber (1870-1954), sua companheira e posteriormente a JohannesWinckelmann, um estudioso das obras de Weber e fundador, no início dos anos 1970, da Sociedade Max Weber, dar umamelhor sistematização à obra, tornando-a uma obra que, pelas características de sua construção, revela um Weber em transição mas, ao mesmo tempo, a consolidação do seu pensamento sociológico.

Na realidade, o capítulo 6 do primeiro volume, objeto desse artigo, nem chega a ser um espólio aproveitado pelos que construíram a obra de Weber, mas um esboço, inacabado, contendo suas impressões sobre o mercado. Nesse capítulo, Weber não faz nenhuma menção a teóricos que discutem o mercado ou estruturas de mercado. O percurso que ele percorre destoa completamente do adotado pelo mainstream econômico.

A própria construção de ?Economia e Sociedade?, iniciada em 1909, foi interrompida pela deflagração da I Guerra (1914), sendo retomada em 1918, mas já com uma compreensão diferente do próprio Weber, que passou a se concentrar em fazer uma apresentação formal das categorias sociológicas por ele já trabalhadas.

Dentre essas ?peças?, estava o capítulo 2, ?Categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica?, onde são estabelecidos os conceitos fundamentais, que descrevem, em certa medida, as relações econômicas existentes, ficando o Capítulo 6 como uma extensão do Capítulo 2 e, certamente, um desdobramento e aprofundamento de Weber sobre os conceitos econômicos, embora seja apresentado de forma breve e, ademais, interrompida.

Vale dizer que ao contrário dos neoclássicos, a-históricos por natureza, Weber afirma que a história econômica se debruça sobre as transformações das condições organizacionais e institucionais, mas também mentais, do agir econômico, em especial do ?surgimento do capitalismo moderno? e da relação de racionalidade e irracionalidade na vida econômica. Logo, é inevitável que a ?racionalidade material? ? no sentido de suprimento das necessidades ? ea ?racionalidade formal? ? no sentido de cálculo exato ? afastam-se uma da outra: essa irracionalidade fundamental e, ao fim, inevitável da economia é uma das fontes de toda a ?problemática ?social?? (LEPSIUS, 2012).

O próprio Weber não admitiu que o Capítulo 2 buscasse a elaboração de uma ?teoria econômica?, com suas leis e fundamentos próprios, mas sim a base para uma análise posterior da economia a partir das categorias por ele estabelecidas.

Nesse capítulo, Weber já alinha o sistema de trocas moderno, com a racionalidade específica às construções societárias, que se baseiam na troca de mercadorias e esta troca, por sua vez, decorre do ?sentido? que a ação humana nelas (as mercadorias) coloca. Entretanto, não há o sentido utilitarista desenvolvido por Jeremy Bentham (1748-1832), a matriz filosófica do postulado neoclássico desenvolvido por Jevons em 1871.

Em Bentham vê-se que o utilitarismo nasce dos contratos forjados a partir das vantagens a serem obtidas pelos agentes econômicos. O próprio Bentham afirma que ?o princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem de aumentar ou diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou comprometer referida felicidade?, o que aponta para uma clara manifestação subjetiva que guia o processo contratual. Em Bentham é a possibilidade de prazer que remete à utilidade. É o passo inicial para a identificação do homoeconomicus.

Weber caminha pela racionalidade objetiva de um sistema que é um passo evolutivo em relação às antigas relações de troca existentes nas comunidades pré-capitalistas. As vantagens ?prazerosas? buscadas nas trocas das antigas comunidades, revelam-se diluídas quando estas se expandem e exigem que o agente econômico, ao se defrontar com a complexidade crescente das trocas, torne-se mais racional quanto aos objetivos de obtenção de maior vantagem na troca. Para Weber, não é a utilidade de um objeto que proporciona os elementos que forjam a troca, mas as ?oportunidades econômicas?, que levam em consideração os costumes, a situação ou o próprio ordenamento jurídico da sociedade.

A construção teórica de Weber compreende a troca como um eixo balizador da economia, embora não seja o único,uma vez que toda política racional serve-se da orientação econômica em seus meios, assim como a política pode pôr-se a serviço de fins econômicos (WEBER, 1998).

Logo, partindo da exposição precedente, o capítulo 6, ?O Mercado?, deve ser entendido como uma extensão do capítulo 2, que, por sua vez, apresenta a conceituação básica necessária para uma formulação teórica, certamente mais complexa, do entendimento de Weber sobre as construções que formam o edifício do pensamento econômico. A sociologia econômica desenvolvida por Weber insere a economia num conjunto de relações que envolvem a cultura, o direito e o Estado, ou seja, o indivíduo está inserido nesse plano e não isolado como arquiteto do mundo, a partir da busca do atendimento das suas próprias necessidades ou das perspectivas de ganhos.

O procedimento utilizado por Weber é o da formulação teórica a partir da abstração de processos tal como eles se apresentam historicamente. Portanto, começa desnaturalizando e deseternizando o mercado[4], ao contrapor a relação associativa caracterizada pela troca no mercado,?a todas as formas de comunidades até aqui examinadas?, isto é, que precederam à forma de organização social que tem o mercado na condição de instituição essencial para a reprodução social. Aquelas comunidades, segundo Weber, teriam conhecido apenas parcialmente a ?racionalização (...) de sua ação social? (WEBER, 1998, p. 419).

O conceito de mercado é apresentado num primeiro momento, ao menos do ponto de vista da quantidade e do tamanho dos agentes, com uma certa proximidade do pressuposto neoclássico de atomicidade dos agentes, pois de acordo com Weber, fala-se de mercado ?quando pelo menos por um lado há uma pluralidade de interessados que competem por oportunidade de troca[5]?.

Na verdade, o que parece que está sendo colocado é a possibilidade de várias formas de organização do mercado e que a estrutura em pauta é, tão-somente, uma delas. Ao mesmo tempo, considera que a estrutura em pauta constitui-se ?apenas a forma mais consequente de constituição de um mercado? e que é ?a única que possibilita o pleno desenvolvimento do fenômeno específico do mercado: o regateio?. Não é dado prosseguimento aos chamados ?processos de mercado?, por estes se constituírem em ?conteúdo essencial da Economia Social? (WEBER, 1998, p. 419). O enfoque privilegiado é, portanto, de natureza sociológica ? ou de ordem relacional.

Sob a perspectiva sociológica, ?o mercado representa uma coexistência e sequência de relações associativas racionais?(WEBER, 1998, p. 419). Embora a troca efetive-se, a princípio, entre dois sujeitos sociais ? um vendedor e um comprador -, ou numa relação associativa de caráter restrito, a fase do regateio caracteriza-se como uma relação social, portanto com caráter amplo, por envolver, na medida do possível, o conjunto dos interessados no estabelecimento de relações mercantis. Embora Weber não aprofunde a discussão sobre o regateio, é importante aludir-se ao fato de que este realiza-se entremeado por relações de poder, de modo que a sua amplitude apresenta-se maior no âmbito de mercados em que é grande o número de interessados tanto do lado da venda, quanto da compra. De outra parte, em mercados caracterizados por número restrito de vendedores ou compradores, a relação de poder mercantil torna-se mais assimétrica, havendo amplo predomínio da parte cujo prato da balança apresenta-se mais pesado.

Sendo a troca mercantil uma relação racional, o dinheiro, enquanto relação social, exerce um papel central e decisivo nas relações de troca. O caráter social do dinheiro, de acordo com Weber, encontra-se relacionado dentre outras coisas à capacidade potencial de relacionamento do seu possuidor com o universo de pessoas que participam do mercado, uma vez que o mesmo é aceito socialmente como meio de pagamento. Tal aceitação decorre de um processo de construção de uma ?ordem racionalmente pactuada ou imposta?(WEBER, 1998, p. 419).

O uso do dinheiro na intermediação de um verdadeiro emaranhado de interesses individuais plurais implica na constituição de relações sociais que se comportam ?como se tivesse sido criada uma ordem com o fim de obtê-lo?. Trata-se, portanto, da ?chamada economia monetária?(WEBER, 1998, p. 419), em que o dinheiro que a princípio constituía-se em meio (para fazer circular as mercadorias) torna-se um fim em si mesmo, uma vez que é aceito como a representação geral da riqueza social.

A propósito da introdução do dinheiro na discussão realizada nos dois últimos parágrafos, será realizada, a seguir, uma breve digressão sobre as considerações feitas por Weber no capítulo segundo de Economia e Sociedade sobre o dinheiro.

Weber não se propõe a formular uma teoria, mas tão-somente apresentar conceitos sobre o dinheiro que permitem entender o papel desempenhado por esta instituição em parte significativa das relações sociais. Interessa ao autor, ?a descrição de determinadas consequências sociológicas elementares do dinheiro? (WEBER, 1998, p. 47).

Com base em Knapp, Weber apresenta, a princípio, dois importantes conceitos sobre o desenvolvimento do dinheiro: meio de troca e meio de pagamento. Denomina por ?meio de troca um objeto material de troca, na medida em que sua aceitação esteja orientada, de modo típico, primariamente por determinada expectativa do aceitante, que consiste na probabilidade duradoura (...) de trocá-lo, numa proporção que corresponde a seu interesse por outros bens? e por ?meio de pagamento um objeto típico, na medida em que a validade de sua entrega, como cumprimento de determinadas obrigações, pactuadas ou impostas, é convencional ou juridicamente garantida? (WEBER, 1998, p. 45).

O dinheiro, como meio de troca, é apresentado como o resultado da escolha social de uma mercadoria para o exercício da função de equivalente (particular ou geral) das mercadorias que circulam em determinada sociedade, como já havia sido enfatizado por Karl Marx. Por meio de pagamento, a referência ao que tudo indica é feita a dada mercadoria que foi escolhida socialmente ou foi imposta para funcionar como equivalente geral ou medida dos valores das mercadorias que circulam em determinada sociedade. Trata-se nesse caso do dinheiro propriamente dito.

O dinheiro na forma mais evoluída segundo a terminologia de Knaap é o dinheiro cartal, que inclui ?todas as espécies de dinheiro, divididas em parcelas e cunhadas ou carimbadas, metálicas e não metálicas, que foram providas de validade pela ordem jurídica ou por acordo? (WEBER, 1998, p. 48)

Ao fazer referência às ?consequências primárias do uso típico do dinheiro?, engloba também as funções do dinheiro: 1) a ?troca indireta? como meio de satisfazer as necessidades dos consumidores, através da ampliação das possibilidades de troca; 2) o cálculo em dinheiro do valor das prestações ou dívidas; 3) a ?reserva de valor? ou ?entesouramento? em espécie ou na ?forma de créditos? como meio de assegurar trocas futuras; 4) a transformação de oportunidades econômicas em oportunidade de dispor de dinheiro; 5) individualização qualitativa e a ampliação da satisfação das necessidades por parte de detentores de dinheiro; 6) obtenção de utilidades pela utilidade marginal do dinheiro de que se espera dispor no futuro; 7) orientação das atividades lucrativas de acordo com as atividades oferecidas e 8) ?a possibilidade de estimar em dinheiro todos os bens e serviços suscetíveis de troca: cálculo monetário? (WEBER, 1998, p. 49).

O dinheiro passa a desempenhar um papel crucial para a economia racional aquisitiva, uma vez que ?do ponto de vista puramente técnico o dinheiro é o meio de cálculo econômico ?mais perfeito?, isto é, o meio formalmente mais racional de orientação da ação econômica? (WEBER, 1998, p. 53). O cálculo racional em dinheiro consiste principalmente em: 1) estimação segundo a situação de mercado das utilidades ou meio de produção ou obtenção; 2) averiguação das possibilidades de ações econômicas racionais, bem como de seus resultados; 3) comparação periódica de um conjunto de bens, bem como de possibilidades econômicas em relação ao dispêndio realizado no início do período; 4) estimativa prévia e avaliação de entradas e saídas.

Para Weber,

A ?racionalidade? formal do cálculo em dinheiro está (...) vinculada a condições materiais muito específicas que interessam aqui sociologicamente. Estas são sobretudo: 1. A luta no mercado de economias autônomas (relativamente, pelo menos). Os preços em dinheiro são produtos de lutas e compromissos, portanto, de constelações de poder? e ?2. O cálculo em dinheiro alcança o grau máximo de racionalidade (...) na forma de cálculo de capital e (...) com a condição material do máximo de liberdade de mercado, no sentido de ausência de monopólios (...) O cálculo de capital rigoroso está (...) vinculado socialmente à ?disciplina da empresa? e à apropriação dos meios materiais de produção ou obtenção, isto é, à existência de uma relação de dominação (WEBER, 1998, p. 68).

A breve incursão no capítulo segundo de ?Economia e sociedade? teve como propósito apresentar o dinheiro, como um importante instrumento para a moderna sociedade capitalista que pauta-se em decisões pretensamente racionais, portanto lastreadas na calculabilidade em um ambiente que envolve poder e incertezas quanto ao futuro.

Em seguida, Weber refere-se à comunidade de mercado como constituindo ?a relação vital prática mais impessoal que pode existir entre os interessados? (Weber, 1998, p. 420). Ora, tal afirmação deve referir-se à forma reificada em que se transformam relações que em essência são relações sociais. Por isso, considera que a troca mercantil é em substância uma relação humana. Sendo assim, envolve necessariamente luta. Logo, tem-se como corolário que o mercado não pode operar livremente ou ser deixado à sua legalidade intrínseca, pois a tendência seria o exercício de algum nível de arbítrio. Portanto, torna-se evidente a necessidade da criação de estruturas ou instituições sociais que exerçam formas de regulação sobre o mercado.

As relações de mercado, contrariamente a outras formas de relações sociais, não encontram-se fundadas na confraternização ou na possibilidade de ajuda mútua, por isso o comércio inexistia entre os participantes da comunidade. Sendo assim, ?a troca livre realiza-se inicialmente somente com os parceiros fora da comunidade de vizinhos? (WEBER, 1998, p. 420). Os limites ao mercado foram criados historicamente tanto por tabus religiosos, quanto por instituições, como foi o caso dos monopólios estamentais ou corporações de ofício.

Os posicionamentos da Igreja foram frequentemente hostis à causa do comércio em função da crença de que ?o mercador raramente ou nunca agrada a Deus? (HEILBRONER, 1982, p. 60). Assim, houve um forte engajamento da Igreja em torno da discussão do ?preço justo?. No caso dos monopólios estamentais, as ações envolviam a padronização da produção, através do estabelecimento de técnicas comuns e o uso de determinados insumos, bem como a exigência da prática de preços iguais para evitar que os membros da corporação enveredassem pelas trilhas da luta fratricida. A desobediência às regras implicava em severas penalidades.

Na realidade, a história mostrou uma longa luta para que o mercado fosse instituído como importante instância para a reprodução social. Ao lado da mercadorização dos bens que têm a propriedade de atender às necessidades humanas, um longo percurso histórico promoveu também um processo de mercadorização das forças produtivas, particularmente a terra e a força de trabalho[6].

A apropriação de meios de produção permitiu uma luta em favor do rompimento dos monopólios estamentais, que deveriam ceder espaço à ação da livre concorrência. Evidentemente, que uma maior concentração de meios de produção implica ao mesmo tempo em poder de comando tanto sobre os meios materiais da produção, quanto sobre a força de trabalho, que encontra-se constituída em mercadoria e, portanto, em busca de comprador para cumprir o destino de toda e qualquer mercadoria.

Para Weber, os monopólios com base na propriedade baseiam-se na política monopolista racional, na dominação, orientada pelo cálculo racional. Portanto, distinguem-se dos monopólios estamentais porque enquanto estes exerciam e defendiam seu poder contra o mercado, aquele exerce a sua dominação exatamente através do mercado.

Ora, estabelecidos os monopólios, a tentativa dos monopolistas será a de estabelecer um ?mercado livre?, que se encontre ?à margem? de regulações ou intervenções. Mas, coerentemente com o pensamento de Weber uma situação destas é inadmissível do ponto de vista da estabilidade das relações sociais, pois ?o mercado é originalmente uma relação associativa com não-companheiros, isto é, com inimigos? (WEBER, 1998, p. 422). Isto significa que uma vez que as relações mercantis generalizam-se é necessário que se estabeleça um certo estado de confiança ou que se instaure uma certa ? ética do mercado?. Com a generalização das trocas entre comunidades, despersonalizando as relações entre os indivíduos, faz-se necessário, segundo Weber estabelecer-se uma racionalidade objetiva, criando-se um conteúdo ético do mercado.

O procedimento racional para dar garantia aos participantes das relações mercantis é o contrato. Diga-se, de passagem, uma economia capitalista é essencialmente contratual. O contrato é o estatuto jurídico que deve assegurar que o acordado deve ser cumprido. Entretanto, é necessário destacar que as transações mercantis necessitam de um certo nível de confiança que encontra-se além das ? garantias contratuais?. A própria regularidade do intercâmbio mercantil impõe que os compromissos assumidos sejam honrados, pois do contrário haveria uma tendência à quebra da regularidade das relações comerciais, inibindo as possibilidades de negócios futuros.

Weber, apesar de identificar no livre mercado um amplo potencial de exercício de poder econômico e político por parte de detentores dos meios de produção materiais sobre os não detentores ou possuidores menos afortunados, afirma que ?a troca é a forma especificamente pacífica de obter poder econômico?. Na verdade, a história mundial testemunha que persistentemente a busca do poder econômico ?pode unir-se à violência? (WEBER, 1998, p. 422).

Assim, uma das grandes mensagens que se pode depreender da leitura do texto em foco é: o mercado é um espaço de expressão e de conquista de poder!O modelo econômico, a que foi feita referência no início do presente texto, pressupõe simetria de poder entre vendedores e compradores, indicando que os mercados operam com agentes atomizados e, portanto, sem capacidade para exercer grande influência sobre as quantidades produzidas e vendidas, bem como sobre os níveis praticados de preços. Tomando-se o modelo de referência como de tipo-ideal e comparando-o com o curso histórico, constata-se a existência de ? desvio? entre o modelo teórico e o movimento da realidade.

Ora, o ? desvio? ou fosso constatado entre o teórico e o real ? o mercado tal como existe concretamente ? é fortemente marcado por assimetrias de poder decorrentes de diferentes níveis de concentração de meios materiais de produção e de comando sobre a força produtiva humana. Disso decorre inevitavelmente distintos níveis de poder nos mercados, seja em face a vendedores ou a compradores.

Isto significa que aquilo que o próprio Weber afirma ser mais específico do mercado ? o regateio, ou a pechincha ? acaba por se fragilizar, pois poder de mercado implica também na própria capacidade de determinar preços, bem como de influenciar as pessoas quanto àquilo que consomem, o que significa fragilizar a propalada ? autonomia do consumidor [7]?.

Finalizando o presente tópico, destaca-se que a leitura do texto de Weber em foco sugere um teor ? mercantilista? ou ? neomercantilista?. Esta posição ancora-se na ideia de defesa de políticas de cunho nacionalista e, fundamentalmente,na forte recorrência feita por Weber à questão do poder e da dominação e no caso específico das relações mercantis à presença marcante e decisiva ? do poder e do dinheiro?. Na verdade, o ? ideal mercantilista? permanece presente nas mentes dos participantes das distintas ? frações? do capital, isto é, dos ? participantes do mercado?.Afinal, assim tem-se movido os países de capitalismo central, não obstante a recorrente retórica de cunho liberal.

Considerações finais

Com vistas à promoção de fechamento do texto, pode ser dito que o capítulo 6, embora seja um esboço inacabado de Weber, revela-se como um complemento ao Capítulo 2 do volume I da obra ?Economia e Sociedade?, ou seja, apresenta, de forma inacabada, um esforço de uma racionalização mais explícita das categorias desenvolvidas na sociologia econômica.

Entretanto pode-se encontrar pontos considerados mais relevantes da exposição precedente. Segundo Weber, o mercado é uma instituição social e não um dado com o qual a humanidade convive desde sempre e conviverá para sempre. Ademais, o processo de constituição do mercado ocorreu a princípio externamente, por se caracterizar numa relação que envolve não-amigos. Sendo assim, a afirmação do mercado implicou também num processo de diluição de laços comunitários, implicando transformações internas das próprias tradições nas comunidades, em decorrência do contato com tradições de outrosgrupos humanos.

O mercado ao envolver relações sociais e de poder, a princípio diz respeito à posse dos meios que permitem a produção das condições materiais da sobrevivência humana. Dentre os detentores dessas condições materiais, os diferentes graus de posse e de poder possibilitam maior nível de obtenção de riqueza, conduzindo a um nível ainda maior de poder. Portanto, relação de mercado é, em essência, relação de poder. Segundo Weber a troca é por excelência o poder exercido de forma não violenta. Obviamente que o exercício do poder via mercado é apenas uma dentre inúmeras possibilidades. Alternativamente ou de forma associada o exercício pacífico do poder via mercado pode se dar através de ? expedientes menos civilizados?, podendo chegar ao uso recorrente e extremo da violência! Afinal, por poder e dinheiro, têm sido cometidas recorrentes atrocidades ao longo da história.

Bibliografia

BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: MILL, John Stuart e BENTHAM, Jeremy. Coleção Os pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1979.

DEANE, Phyllis. A evolução das idéias econômicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. 287 p.

DEYON, Pierre. Mercantilismo (1969). São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.

HEILBRONER, Robert. A formação da sociedade econômica. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 366 p.

LEPSIUS, M. Rainer. ?Economia e sociedade?:a herança de Max Weber à luz da edição de sua Obra completa (MWG) .Tempo soc.[online]. 2012, vol.24, n.1, pp.137-145.

MARSHALL, Alfred (1890). Princípios de Economia: tratado introdutório. São Paulo: Nova Cultural, 1985. 441 p.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 2. ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985. V. I, T. 1. 301 p.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 2. ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985. V. I, T. 2. 306 p.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 198. 349 p.

WEBER, Max. Economia e sociedade. 4. ed., Brasília: Editora da UNB, 1998. v. I. 422 p.

WEBER, Max. Max Weber:Sociologia. COHN, Gabriel (Org.). 4. ed., São Paulo: Ática, 1989. (Coleção Grandes Cientistas Sociais; 13). 216 p.

Notas

[1] Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2008). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
[2] Doutorando em Ciências Sociais, na área de Cultura e Representações. Atualmente é professor assistente no Departamento de Economia (DEPEC) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[3] Uma discussão sobre as escolas econômicas com base na concepção de paradigmas, conforme apresentada por Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas, encontra-se em Deane, Phyllis. A evolução das idéias econômicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
[4] Vale destacar que um dos principais pontos de divergência de Marx com os economistas clássicos, Smith e Ricardo principalmente, era o fato destes considerarem a produção capitalista como natural e eterna. Afirmava que os clássicos explicavam muito bem como se produzia sob condições capitalistas, no entanto, não conseguiam explicar como estas condições eram produzidas (MARX, 1985).
[5] Na verdade, posteriormente tal idéia parece ser abandonada quando trata dos esforços empreendidos pelos ofertantes no sentido de se constituírem em monopolistas.
[6] Não convém uma longa exposição sobre este processo, mas vale registrar a abordagem feita por Marx no capítulo 24 do livro I de O Capital, intitulado A assim chamada acumulação primitiva abordando a temática em pauta. Destaque também deve ser dado ao capítulo sexto de A grande transformação de Polanyi, onde o autor refere-se à terra, à força de trabalho e ao dinheiro como falsas mercadorias, pelo fato de não serem produzidos com vistas à venda.
[7] Não se está afirmando que estruturas concentradas, como as oligopolizadas por exemplo, maquiavelicamente, se impõem à cultura modificando inevitavelmente hábitos de consumo. No entanto, é preciso considerar que hábitos de consumo têm sido modificados ao longo do tempo, em função de ofertas crescentemente heterogêneas de bens de consumo provenientes de estruturas de mercado crescentemente concentradas e que se espraiam por todo o mundo.


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