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ENTREVISTA COM LILIANA LYRA JUBILUT - A CONTÍNUA BUSCA DE PROTEÇÃO INTEGRAL PARA PESSOAS REFUGIADAS E OUTROS MIGRANTES
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 15, núm. 1, 2018
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 15, núm. 1, 2018

Recepção: 30 Junho 2018

Aprovação: 05 Julho 2018

Resumo: Na entrevista concedida a Revista Argumentos, Liliana Lyra Jubilut trata da temática do refúgio a partir dos seguintes eixos principais: metodologia de pesquisa, Direitos Humanos, proteção a pessoas refugiadas e fluxos migratórios na América Latina. Jubilut argumenta, considerando os marcos legais, internacionais e nacionais, as principais lacunas para trabalhar a questão do refúgio, tanto a partir do viés do pesquisador quanto da prática de proteção. A Professora destaca a importância e a necessidade de compreender as pessoas refugiadas e migrantes como sujeitos.

Palavras-chave: categorias, Direitos Humanos, metodologia, migrante, refúgio.

Resumen: En la entrevista concedida a la Revista Argumentos, Liliana Lyra Jubilut trata el tema del refugio a partir de los siguientes ejes principales: metodología de la investigación, Derechos Humanos, protección a personas refugiadas y flujos migratorios en América Latina. Jubilut, considerando los marcos legales, internacionales y nacionales, señala las principales lagunas a la hora de trabajar el fenómeno del refugio, tanto a partir del sesgo del investigador como desde la práctica de la protección. La profesora destaca la importancia y la necesidad de comprender a las personas refugiadas y migrantes como sujetos.

Palabras clave: categorías, Derechos Humanos, metodología, migrante, refugio.

Abstract: In the interview given to Journal Argumentos, Liliana Lyra Jubilut deals with the refuge theme from the following main axes: Research methodology, Human Rights, refugee protection and migratory flows in Latin America. Jubilut argues, considering the legal, international and national frameworks, the main gaps on the refuge issue. For Jubilut is important considerate that aspect both from the researcher's bias and from the practice of protection. The Professor emphasizes the importance and the need to understand refugees and migrants as subjects.

Keywords: categories, Human Rights, methodology, migrant, refuge.

Soares de Aguiar: Atualmente há um debate relacionado a responsabilidade ao proteger, principalmente no processo de categorização dos indivíduos como refugiados. A Julia Bertino Moreira publicou um texto sob o título ?Pesquisando Migrantes Forçados e Refugiados: reflexões sobre desafios metodológicos no campo dos estudos?, no qual argumenta que os rótulos acabam sendo instrumentos para conceder proteção. Qual a sua opinião sobre as definições dadas a esses indivíduos, e como isso afeta a proteção desses sujeitos no marco dos Direitos Humanos Internacionais?

Jubilut:É importante ter a noção da necessidade de uma abordagem multidisciplinar nos temas migratórios e de proteção, em função de ser muito complicado fazer análises de um único ponto de vista metodológico ou de uma única abordagem dentro dos diversos campos ou dos ramos do saber. O que pode fazer sentido em um determinado universo pode não ser o ideal em outro. Um exemplo disso é o próprio conceito ou as percepções de ?refugiado?. E um determinado conceito em uma determinada área pode não parecer lógico, ou não ter aplicação em outra área específica. Eu acredito que isso é o primeiro ponto que precisamos ter em mente: a diversidade metodológica dos ramos que lidam com a proteção da pessoa, e das pessoas refugiadas, e as vantagens e as limitações que essas áreas trazem.

Isso se aplica à questão das categorias, que no que tangem ao refúgio e à migração forçada são bastante relevantes a partir de uma abordagem jurídica. Isso porque, no cenário atual, temos Regimes de Proteção diferenciados no Sistema Internacional, e, se não tivermos como fazer essa associação da pessoa com os critérios legais, não conseguiremos efetivar a proteção de uma maneira mais ampla a partir das normas internacionais. É preciso lembrar que essas normas são compromissos que os Estados adotaram. Então é importante ter esses critérios, ou como você mencionou, essas categorias definidas do ponto de vista de primeiro conseguir garantir a proteção legal. E de em um segundo momento perceber quais são as necessidades dessas pessoas, bem como a primordialidade de se desenvolver novos regimes para proteger aqueles que não se ?enquadram? nas normas de proteção vigente. Dependendo do tipo de migração forçada que essa pessoa sofreu ela pode ter uma necessidade diferente. Essa questão é verificável, por exemplo, quando se fala dos deslocados ambientais que ainda vivem um momento de definição da sua conceituação e de seu reconhecimento pelo Direito Internacional.

O questionamento das categorias aparece já com Roger Zetter em seu texto sobre ? LabellingRefugees?, o qual ele retomou 16 anos depois com ? More Labels, FewerRefugees?. O autor aponta o problema dos rótulos, ou das categorias, no sentido de se utiliza-los como uma maneira de retirar direitos, primeiro de acesso a serviços e, mais recentemente, em relação ao próprio reconhecimento do status de refugiado. Mas o problema não me parece ser o ?rótulo? em si, e sim como ele está sendo mobilizado. Vários tipos ou categorias de migrantes continuam sem um Regime específico de Proteção Internacional. Então, ao meu ver, é uma questão de como se faz o uso, muitas vezes político, dessas categorias para minimizar a perspectiva de proteção. Este efeito pode ser diluído a partir do aprofundamento sobre os conceitos técnicos, dos Direitos dos Refugiados, dos Direitos Humanos e do Direito Internacional como um todo. Deve-se levar em consideração que o rótulo é direcionado à um determinado aspecto da proteção, e que ele não deve ser vinculado às percepções da pessoa. Toda vez que o rótulo sair dessa dimensão de assegurar proteção e implicar em prejuízos, ele está sendo mal utilizado ou deve ser repensado. Nesse sentido, a obra de Emma Haddad ? The Refugee in International Society? é interessante uma vez que, para inserir a dimensão de gênero, ela utiliza o pronome ? she? em seu texto, chamando atenção para o número de mulheres refugiadas, e tentando quebrar o paradigma que traz ao inconsciente a imagem de refugiados homens.

Isso porque no atual cenário internacional eu sinto que o pouco de proteção que temos, deriva em grande parte da solidariedade da sociedade civil que pressiona os governos, mas sobretudo dos compromissos internacionais dos Estados; que me parecem dispostos a proteger apenas uma minoria. A sensação que tenho é de que a falta das categorias não levaria a um aumento da proteção, não teríamos mais proteção para alguns, mas sim falta de proteção para todos. No cenário ideal a proteção existiria para todos os migrantes, forçados ou não, e que tenham entrado de modo regular ou não nos territórios dos Estados.

Soares de Aguiar:Na perspectiva do pesquisador de lidar com desafios que vão desde o acesso aos migrantes para desenvolver o trabalho de pesquisa de campo, que é um processo longo para conseguir confiança, para escutar aquelas histórias de vida, até a sensibilidade para a interpretação dos dados, quais você acha que são as principais questões metodológicas no processo de pesquisa na temática do Refúgio?

Jubilut:Eu acredito que a primeira coisa a ser lembrada e levada em consideração é que refugiados e outros migrantes são pessoas. Eles não estão lá como um dado, não estão apenas como um objeto de pesquisa. Você está lidando com vidas humanas, é importante ter essa consciência em todo o processo. Isso levaria a uma perspectiva de adotar uma Ética de Meios em todo o processo, pensar cada ação da sua metodologia ou cada ação da sua pesquisa no sentido de: eu estou adotando a conduta mais adequada para um relacionamento com um outro ser humano? Ou: eu posso causar algum tipo de prejuízo? E a partir de então ir delimitando suas ações.

Em um segundo momento eu acho que é importante pensar qual é o objetivo da pesquisa: Para quê que eu estou fazendo aquilo? Qual é meu objetivo? Eu quero trabalhar uma questão teórica, então será que precisaria de inúmeras entrevistas de campo fazendo essas pessoas reviverem o trauma? É preciso tentar verificar se os instrumentos são necessários e adequados para os objetivos que você quer alcançar, sobretudo no que diz respeito às pessoas refugiadas e outros migrantes.

Além de pesquisas teóricas, é possível se pensar em uma pesquisa que vise exatamente refletir as técnicas de pesquisa. Nesse caso, e, na minha perspectiva, seria importante não apenas narrar os problemas e as questões, mas trazer soluções. Quando coordenei o projeto do Pensando o Direito no âmbito do Ministério da Justiça e do IPEA [3], encontramos vários problemas relativos à prática da pesquisa.Criamos todos os instrumentos de pesquisa do zero, e deixamos disponíveis na Internet, com acesso público e gratuito 4, a fim de facilitar futuras investigações.Acredito que compartilhar na área da pesquisa é essencial, e se já tivemos a dificuldade e a superamos, tentar auxiliar futuros pesquisadores era o natural. Não basta só apontar as dificuldades, mas, se é possível, é relevante também trazer propostas.

Um terceiro tipo de pesquisa que me parece ser viável, é aquela que tem a vontade de contribuir na prática da proteção às pessoas refugiadas (aqui entendida de maneira ampla, como proteção integral). Pode ser, por exemplo, uma contribuição no sentido de chamar a atenção da sociedade para um determinado fluxo migratório; ou uma pesquisa que vai mostrar problemas na proteção de um certo grupo de refugiados ou outros migrantes; pode ser a abordagem de uma questão específica, pontual, mas que tenha um impacto de contribuir na prática para a proteção real dessa população. Nesse caso, pensar nos reflexos das pesquisas (positivos ou prejudiciais) é essencial, a fim de ter a Academia efetivamente contribuindo para a melhoria da proteção, e da vida dessas populações.

Então, na minha perspectiva, mais do que nos debruçar em questões técnicas, é preciso fazer essas considerações: lembrar sempre que os refugiados e migrantes são pessoas, adotar uma Ética de Meios em todo o processo de pesquisa, e refletir nos objetivos que a pesquisa almeja atingir a fim de verificar se os instrumentos são adequados e necessários. Porque quanto mais honesto o pesquisadorfor com seus objetivos, mais honestos serão os textos, e quanto mais éticos nas pesquisas e nos procedimentos, mais adequados serão os resultados em termos de uma efetiva proteção integral.

Soares de Aguiar:Apesar da categoria migrante forçado já englobar em sua definição uma concepção de vulnerabilidade, dentro deste grupo há outros indivíduos que podem ser vistos com ?maior? vulnerabilidade, como o caso das mulheres e crianças, apesar de serem maioria quantitativamente (ACNUR, 2017). Como você avalia os desafios da migração forçada para esses grupos, e o processo de desenvolvimento de pesquisa com mulheres migrantes, por exemplo?

Jubilut:Primeiro, ser migrante forçado já é uma categoria de vulnerabilidade, mas isso não significa que esse seja o único aspecto da identidade da pessoa. Então você pode ter em alguns casos duplas, triplas, quádruplas vulnerabilidades que estão diretamente relacionadas à identidade da pessoa, mas sobretudo em como a sociedade trata essa identidade e às necessidades específicas que surgem dessa identidade. E é extremamente relevante, eu diria até essencial, que essas necessidades específicas sejam incorporadas em todo espectro da proteção. Seja durante o deslocamento, durante toda a etapa de um procedimento de análise de um pedido de proteção legal, ou depois que essa pessoa tenha um status jurídico definido.

No caso do ACNUR, já há alguns anos, há a adoção uma abordagem que chamam de Age, Gender and Diversity, [4]que seria exatamente uma tentativa de incorporar nas práticas da Agência e de seus parceiros, perspectivas que levem em consideração essas necessidades específicas. Na pesquisa do Pensando Direito foram incluídas as questões de gênero, de idade e também de deficiências. O Diversitydo ACNUR é bem amplo, e também inclui deficiência, mas no nosso caso como se tratava de mapear obstáculos para o acesso a serviços e a direitos, entendemos que seria interessante e relevante ter essa perspectiva específica das pessoas com deficiência. Para mim é fundamental incorporar essas questões, até porque o refúgio está basicamente tentando resgatar e proteger um ou mais aspectos da identidade da pessoa.

De acordo com a definição da Convenção de 1951 [5] a pessoa é refugiada em função de sua raça, religião, nacionalidade, opinião política ou pertencimento a um grupo social. São todos elementos que compõem a identidade da pessoa. O indivíduo, então, tem um bem-fundado temor de perseguição por ser quem é. E, em última análise, o refúgio quer deixar essa pessoa ser quem ela é, por meio da proteção internacional. E para que isso ocorra de forma adequada, é ver as necessidades que aquela identidade, ou melhor dizendo, que aquelas identidades que compõem aquela pessoa, trazem em termos de proteção.

Nesse sentido, e em termos da determinação do statusde refugiado, é preciso ter uma capacitação dos entrevistadores quanto à questão de gênero, tanto a situações ligadas as mulheres quanto à população LGBTI+, a questões de violência doméstica, de violência sexual, ligadas a machismo institucionalizado (pois a discriminação continuada pode ser considerada perseguição). Na entrevista deve-se aplicar padrões claros de proteção, que vão levar em consideração a maior proteção possível, como ensinam os Direitos Humanos. No caso das mulheres, a questão da família também é importante, muitas delas vêm sem os filhos. Aí a vulnerabilidade resultada de uma questão que pode não ser tão ligada ao jurídico, mas sim de se perguntar qual é a melhor forma de lidar com essa mulher que já está nesse momento de espera continuada para saber se vai ser protegida (uma das vulnerabilidades dos migrantes) e que está sem os filhos. Como é que eu vou lidar com essa ausência da família, que também pode reforçar vulnerabilidades? É preciso pensar em estratégias que garantam, em todos os momentos, proteção às identidades múltiplas das pessoas, verificando o que cada uma dessas identidades traz em termos de necessidades de proteção.

Soares de Aguiar:No caso da América Latina, temos como documento definidor da categoria migrante forçado a Declaração de Cartagena [6]. Junto com André deLima Madureira, você assinou um texto que trata dos desafios para proteção dos refugiados no marco deste documento. Vocês citaram também as lacunas nas definições da Convenção de 1951, do Protocolo de 1967 [7]. Atualmente a América Latina apresenta diversos fluxos migratórios que ainda enfrentam desafios de proteção internacional. A partir da ponderação feita com Madureira em 2014, como avalia a situação da proteção legal dos migrantes?

Jubilut:O Sistema do Direito Internacional dos Refugiados não é perfeito e não contempla a proteção de todos os tipos de migrantes forçados. Contudo, ele é um Sistema relevante e que protege milhões de pessoas. A Convenção de 51 ? base desse sistema - é um documento muito associado à época em que foi criada, logo depois da 2ª Guerra Mundial, e assim como outros documentos de Direito Internacional, não fez um exercício de futurologia. Os Estados mais favoráveis à proteção acharam que apenas colocando a possibilidade de reconhecimento do status de refugiado pela categoria ?grupo social? já estavam tornando a definição bastante maleável e adaptável. Contudo, novos tipos de migração forçada que não se enquadram nessa proteção foram surgindo.

Durante muito tempo se percebia até uma falta de discussão de como a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 poderiam proteger ou não essas outras pessoas. Era algo que ficava meio subentendido que nem todas as pessoas se enquadravam. Mais recentemente as questões de migração forçada foram ganhando contornos humanitários e forçando um olhar o Sistema de Refúgio, e, de uma maneira mais ampla, para o Sistema do Direito Internacional, a fim de se pensar outras formas de proteção, como por exemplo para os deslocados internos.

Assim, o que se tem visto isto até aqui é a possibilidade de desenvolvimentos ou nacionais ou regionais de uma proteção mais ampla. Seja proteção complementar, que é aquela que se aplica a pessoas que não se enquadram como refugiados, seja por meio de ações que podem beneficiar refugiados e outros migrantes forçados, como no caso dos Vistos Humanitários de entrada no Brasil. Mas esses avanços são pontuais. É preciso um esforço no cenário internacional para avançar na proteção e suprir as lacunas da Convenção de 1951, que foi pensada apenas para refugiados (e mesmo assim para um grupo limitado entre os refugiados) e não para outros migrantes com necessidade de proteção internacional.

Eu não acho viável, e nem que seria aconselhável, inserir todos os migrantes forçados no âmbito da proteção do refúgio. A mistura pode gerar a possibilidade do uso dos ?rótulos? de uma maneira inadequada, de se ignorar as necessidades específicas de proteção e levar a uma diminuição da pouca proteção que existe. Eu acho que essencial que se criem novos Regimes de Proteção específicos para os diferentes tipos de migrantes (voluntários ou forçados) e regras de proteção geral para todos as pessoas migrantes. E para que se crie efetiva proteção, seria fundamental que esses Regimes dialogassem entre si e com os Direitos Humanos.

Soares de Aguiar:E em relação aos deslocamentos forçados na região latinoamericana, em específico a situação dos venezuelanos?

Jubilut:Eu acho bastante curioso, para não dizer complexo ou triste, quão pouca informação tem-se aqui no Brasil sobre os deslocamentos forçados na/da América Latina. Durante 60 anos nosso país vizinho, a Colômbia , esteve em conflito, recentemente tendo aberto a possibilidade de revisão do Acordo de Paz de 2016 [8] em função das novas eleições. Foi um conflito que deslocou milhões de pessoas, interna e internacionalmente, e é uma situação que permanece.

A gente teve, em função do terremoto do Haiti, um deslocamento massivo de pessoas que chegaram no Brasil quando o país estava em um momento de crescimento econômico, precisando de mão de obra na construção civil, e que assegurou uma proteção temporária. Grande parte dessas pessoas, contudo, continuou a migrar: do Brasil para o Chile, do Chile para o México, e mais recentemente tentando entrar nos Estados Unidos. E, ainda em relação aos Haitianos, e em paralelo a esse movimento de migração, há uma crise de proteção na República Dominicana, sobretudo relativa ao tema da apatridia dessa população nesse país.

Há uma outra crise, que está envolvida no uso político da migração por Trump, que é a crise do Triangulo Norte da América Central- Guatemala, El Salvador e Honduras. Essa região está experimentando deslocamentos intensos, que inclusive envolvem grupos vulneráveis: muitas mulheres, ou seja, se tem uma questão de violência de gênero; muitos adolescentes e crianças, tem uma questão etária, e que estão se deslocando em massa e sendo submetidos a condições violadoras de direito seja no trânsito (México), seja na chegada aos Estados Unidos, e sem proteção, principalmente em território estadunidense.

E, por fim, dentro da nossa região há ainda a questão dos Venezuelanos. Existem números extraoficiais que já falam em 4 milhões de refugiados Venezuelanos. Essa questão retoma o tema dos conceitos, sobretudo do reconhecimento do status de refugiado. Veja-se o caso do Brasil: muitos desses deslocados foram protegidos pela concessão de permanência para nacionais de países do Mercosul, depois, com a suspensão da Venezuela do bloco, passou-se a permitir o pedido de permanência por ser um país fronteiriço. E se por um lado isso garante uma proteção mais rápida, já que os pedidos de refúgio estão levando 3, 4 anos para serem analisados, por outro lado você diminui a proteção, uma vez que o refúgio tem todo um arcabouço internacional de permitir alguns direitos específicos, como o direito do non-refoulement [9], e de assegurar (ainda que seja em tese um instituto temporário) uma proteção de uma maneira mais permanente (até que as condições objetivas do país de origem se alterem e deixem de configurar base para um bem-fundado temor de perseguição).

No caso dos venezuelanos, eu não vejo como não enquadrar essas pessoas como refugiadas: pela Convenção de 1951, tem-se que o conceito exige bem fundado temor de perseguição por raça, religião, nacionalidade, opinião política ou pertencimento a grupo social. Para mim, e de modo geral, haveria o enquadramento nos dois últimos critérios. As pessoas que queiram ser reconhecidas como refugiadas deveriam ser reconhecidas como refugiadas. No caso do Brasil isso se daria não somente pela Convenção de 51, mas pelo critério da grave e generalizada violação dos Direitos Humanos (derivada da Declaração de Cartagena e incorporado na Lei 9.474/97). Nesse sentido, tem-se a questão de fome, há violação de Direitos Humanos que são generalizadas para parcela da população contrária ao governo, e há questionamentos sobre a democracia no país. Mas até do ponto de vista da coerência do governo brasileiro, que trabalhou para suspender a Venezuela no Mercosul, e fez o mesmo na OEA, como seria coerente defender essas suspensões de um lado, e de outro lado considerar que talvez não sejam refugiados? Volta-se à ideia do uso adequado dos conceitos do Direito dos Refugiados, para que eles não sejam cooptados por questões e opiniões políticas. Quem sofre no fundo não são os 4 milhões que aparecem como números, são 4 milhões de pessoas que precisam de proteção.

Soares de Aguiar:Por fim, e ainda mantendo a atenção na perspectiva brasileira, apesar de a legislação do país ser reconhecida internacionalmente como avançada, há desafios ainda a serem enfrentados para lidar com o recebimento de migrantes no país. A Nova Lei de Migrações [10], aprovada no ano de 2017, pode ser considerada um esforço neste sentido, e foi um processo interessante de ser acompanhado, tendo um pouco mais de participação da sociedade civil. Como você avalia esta legislação e a Lei 9474/97 [11] na proteção de indivíduos solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil?

Jubilut:Eu acho que foi importante a adoção de uma Nova Lei de Migrações pelo menos para substituir a retórica que existia no Estatuto do Estrangeiro, tentando criar uma percepção da migração de uma maneira mais positiva e de uma maneira mais ligada aos Direitos Humanos .Contudo, eu tenho uma percepção pessoal sobre essa aproximação, até com o próprio título da Lei. Em vários fóruns e oportunidades, sugeri que o título não fosse ?Lei de Migração?, mesmo que se mantivesse ?Lei de Migração? que se acrescesse ?e Proteção ao Migrante?, pois creio que se é para ter um cunho de Direitos Humanos a gente precisa focar no sujeito e, dentro da escolha de quais são os nossos objetivos (seja para as pesquisas seja para a prática), deixar bastante claro que se a ótica é de Direitos Humanos, o objetivo seria de proteção do sujeito que é a pessoa migrante. Ao invés de pensar na questão como um fenômeno sociológico (ou seja, apenas na migração), pensar do ponto de vista do sujeito que realiza esse fenômeno (a pessoa migrante).

Acho também que a Lei deixou muita coisa para a regulamentação. Como vários especialistas mais focados na parte de migração em geral assinalaram, essa regulamentação não tem sido a mais adequada do ponto de vista da proteção. Acredito que foi um avanço, uma resposta de anos de luta para se mudar o Estatuto do Estrangeiro, mas que causa uma pontada de frustração no sentido do que avançou em termos de proteção efetiva das pessoas migrantes, e de uma percepção de Direitos Humanos na realidade.

Por outro lado, a Lei traz a questão do Visto Humanitário, que me parece ser um avanço significativo. Mas até nas novidades ficou faltando um avanço mais robusto. E isso faz com que a gente continue tendo o Refúgio como a principal forma de proteção duradora de migrantes forçados no Brasil. Não é à toa que se tem o número de 85 mil pedidos de refúgio pendentes no país. Isso foi algo que eu também postulei bastante, e que acabou não acontecendo: que eram necessárias novas formas de regularização humanitária independentes do Refúgio. Sem alternativa, acaba-se sobrecarregando o Regime do Refúgio, e faz com que a aplicação do conceito de refugiados, na prática, também comece a ser dificultado. Cria-se, inconscientemente, critérios mais graves, ou mais requisitos para que a pessoa possa efetivamente ser reconhecida como refugiada. Não falo isso pensando em uma proteção ao regime em si, mas sim nas pessoas que necessitam da proteção dele.

Sobre a Lei dos Refugiados, a Lei ? Lei 9474/97- é importante lembrar que ela é considerada bastante avançada para a época em que foi criada, e que inspirou várias legislações da nossa região, mas que não trouxe os avanços mais recentes. Não há, por exemplo, a questão do gênero claramente definida como critério dentro do grupo social.

Além disso, a Lei traz uma composição do CONARE (o órgão com a responsabilidade primária pelos casos de refúgio e políticas públicas para refugiados) que talvez precisasse ser repensada para a inclusão, principalmente, de atores ligados aos Direitos Humanos, e uma maior participação da sociedade civil.

Eu acredito que temos na Lei 9.474/97 um mínimo de proteção bem estruturado e bem adequado, mas o que me preocupa é que durante alguns anos eu enxergava na Lei duas funções básicas: a parte da elegibilidade (do reconhecimento do statusde refugiados) e das políticas públicas. No início da Lei estava-se consolidando a parte da elegibilidade, então não ter tantas políticas públicas era algo que pensava contingencial, uma hora iria chegar. Estávamos fazendo a proteção basilar, digamos assim. Em dado momento pareceu que a elegibilidade estava consolidada, e que as políticas públicas iriam começar a existir. De repente, contudo, me parece que a elegibilidade também está prejudicada. E as políticas públicas simplesmente paralisaram. Temos uma boa Lei ,a questão agora é implementar de maneira adequada e revê-la no sentido de atualizar para garantir uma maior proteção a partir de uma perspectiva de Direitos Humanos.

Bibliografia

ACNUR. Global Trends: Forced Displacement in 2016. 2017. Disponível em: http://www.unhcr.org/5943e8a34.pdf Acessado em: junho de 2016.

HADDAD, Emma. The Refugee in International Society. 2009. ISBN: 9780511491351.

JUBILUT, Liliana Lyra; MADUREIRA, André Lima. Os Desafios de Proteção aos Refugiados e Migrantes Forçados no Marco de Cartagena + 30. Dossiê: ?Migrações Forçadas?. REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXII, n. 43, p. 11-33, 2014.

MÉDICOS SEM FRONTEIRAS. Forçados a Fugir do Triângulo Norte da América Central: Uma Crise Humanitária Negligenciada. 2017. Disponível em: https://www.msf.org.br/publicacoes/forcados-a-fugir.pdf Acessado em: junho de 2018.

MOREIRA, Julia Bertino. Pesquisando Migrantes Forçados e Refugiados: Reflexões sobre Desafios Metodológicos no Campo de Estudos. Rev. Sociedade e Cultura, Goiás. V.20, N.2. p. 154-172. 2017. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/fchf/article/view/53079/25586 Acessado em: junho de 2018.

ZETTER, Roger. Labelling Refugees: Forming and Transforming a Bureaucratic Identity. Journal of Refugee Studies. V.4, Issue 1. 1991.

___________. More Labels, Fewer Refugees: Remaking the Refugee Label in a Era of Globalization. Journal of Refugee Studies. V.20, Issue 2. 2007.

Notas

[1] Doutora e Mestre em Direito Internacional pela USP. É Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Católica de Santos, faz parte da coordenação da Cátedra Sérgio Vieira de Mello em parceria com o ACNUR (CSVM-UniSantos) desde 2013.
[2] Mestra em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), Bacharela em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
[3] O Projeto Pensando Direito é de iniciativa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ), criado no ano de 2007 para incentivar da democratização do processo legislativo brasileiro. São lançados editais para contratação de equipes de pesquisa em temas de interesse da Secretaria. Jubilut coordenou a pesquisa ?Migrantes, apátridas e refugiados: subsídios para o aperfeiçoamento de acesso a serviços, direitos e políticas públicas no Brasil? em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O resultado da pesquisa encontra-se disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/12/PoD_57_Liliana_web3.pdf Acesso em: junho de 2018.
[4] Disponíveis a partir de: . Acesso em junho de 2018. No espaço destinado à pesquisa, há um ícone ?resumo? a partir do qual se tem acesso aos apêndices da pesquisa, que trazem os instrumentos elaborados. Informações s a respeito desta perspectiva adotada pelo ACNUR, encontram-se disponíveis em:http://www.unhcr.org/protection/women/4e7757449/unhcr-age-gender-diversity-policy-working people-communities-equality-protection.html Acessado em: junho de 2018.
[5] O texto completo da Convenção de 1951 pode ser encontrado em português no link: http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_R efugiados.pdf Acessado em: junho de 2018.
[6] O texto completo da Declaração de Cartagena pode ser encontrado em português no link: http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Decla racao_de_Cartagena.pdf?view=1 Acessado em: junho de 2018.
[7] O texto do Protocolo de 1967 pode ser encontrado em português no link: http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Proto colo_de_1967.pdf Acessado em: junho de 2018.
[8] A vitória do candidato de direita, Iván Duque, a eleição para Presidência da República da Colômbia, abriu caminho para a revisão do Acordo de Paz com as Farc. No primeiro discurso que realizou como Presidente eleito, em junho de 2018, Duque informou que realizará correções no Acordo. Outras informações podem ser consultadas através do link: http://www.jb.com.br/internacional/noticias/2018/06/17/ivan-duque-e-eleito-presidente-da-colombia e-anuncia-revisao-do-acordo-de-paz/Acessado em: junho de 2018.
[9] Princípio de não devolução de refugiados aos seus países de origem.
[10] A Nova Lei de Migração é de 24 de maio de 2017, e encontra-se disponível pelo link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm Acessado em: junho de 2018.
[11] A Lei 9674/97 encontra-se disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9474.htm Acessado em: junho de 2018.


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